O peso do passado
por Francisco RussoA abertura de Nobadi é emblemática: ao som de uma melodia tocada em uma gaita de fole, acompanhamos os movimentos silenciosos de um senhor de idade enrolando seu melhor amigo, um cachorro, em um lençol. Ele acaba de morrer e, em meio a acusações sobre uma suposta medicação errada receitada pela veterinária, o dono se prepara para enterrá-lo no quintal da própria casa.
Se o peso de tal ato percorre todo o longa-metragem, se manifestando em variados embates duros envolvendo os personagens principais, é interessante notar como o diretor Karl Markovics aos poucos transfere o conceito do "melhor amigo", adaptando-a ao convívio humano em uma situação de extremos. Afinal de contas, ao não conseguir cavar o tal túmulo, o dono do cão contrata um desconhecido, muçulmano, que vive nas ruas em busca de emprego. São eles os verdadeiros protagonistas desta história, ou melhor, a dinâmica que, pouco a pouco, é estabelecida entre eles.
A todo instante há um intenso jogo político em torno de Heinrich (o dono) e Adib (o muçulmano), a começar pelo escancarado preconceito decorrente da presença de imigrantes ilegais até a eterna disputa de classes sociais, onde quem paga se julga superior a quem recebe sem que seja necessário prestar qualquer auxílio ou consideração. Markowics entrega um filme duro, o tempo todo, onde a raiva surge seja em explosões ou no olhar prestes a eclodir. De forma a realçar a crueza das palavras, o diretor opta por quase eliminar a trilha sonora, dando às discussões uma tensão inerente que torna-se, também, personagem da narrativa.
Em meio a tal embate, o diretor também constrói um clima de mistério acerca de quem são aquelas pessoas que estão ali. Informações prévias são dadas a conta-gotas, habilmente manipuladas de forma a realçar também o peso do passado: mais que o destes personagens em específico, do povo que representam. Do lado de Heinrich, o histórico de apoio ao nazismo, com Adib a violência intrínseca ao seu país-natal. A partir de diálogos milimetricamente calculados, muito se diz nas entrelinhas - o que não só realça a tensão existente como, ainda, a leva para âmbitos ainda mais abrangentes.
É claro que, para que tal jogo de palavras funcione a contento, muito se deve às boas atuações de Heinz Trixner e Borhanulddin Hassan Zadeh, constrastantes não apenas no aspecto físico mas também no modo de agir: Heinrich sempre sisudo, Adib com uma certa malandragem intrínseca que tanto irrita seu empregador. O grande senão do filme é o elo que une suas duas metades, um tanto quanto frágil, por mais que aceitável dentro do contexto geral. Mais não deve ser dito, sob o peso de estragar a experiência do espectador.
De certa forma, Nobadi estruturalmente lembra bastante o ótimo suspense dinamarquês Culpa, no sentido de construção de clima através de pouquíssimos cenários e personagens, muito graças à habilidade na condução do texto por parte do diretor e elenco. Um filme incisivo e potente, que tem muito a dizer (e refletir) sobre como anda o mundo atual.
Filme visto no Festival de Toronto, em setembro de 2019.