Alma brasileira
por Francisco RussoGoste-se ou não, é inegável que a Operação Lava-Jato está na história do Brasil. Até mesmo já virou assunto de filmes e séries, por mais questionável que seja abordar suas entranhas com tão pouco tempo de distanciamento. Em seu novo trabalho, a diretora Sandra Kogut vai além dos meandros policiais para retratar o reflexo da Lava-Jato no cotidiano da sociedade brasileira, mais exatamente em um núcleo familiar de classe alta e todos aqueles que orbitam ao seu redor. O resultado é um retrato preciso de a quantas anda a eterna divisão de classes no Brasil.
Para desenvolver tal narrativa, Sandra e a também roteirista Iana Cossoy Paro estabeleceram uma interessante linha temporal: ao longo de três anos, exibir apenas o ocorrido em sua semana final, próxima às festas típicas do período. Com isso, de antemão o filme entrega elipses de um ano de distância, onde muito acontece sem ser mostrado. Perceber tais mudanças faz parte do jogo narrativo estabelecido com o espectador, que interage ainda pelo seu próprio conhecimento sobre os efeitos da Lava-Jato em si.
Diante de tal proposta, seu fio condutor ao longo dos três anos é Madalena, a caseira que coordena a mansão da tal família. Trata-se de uma personagem absolutamente popular, não por acaso interpretada por Regina Casé, dona de um carisma inabalável capaz de produzir divertidas frases de efeito em profusão. Madalena, ou Madá, tem aquela desenvoltura típica de quem trabalha no mesmo lugar há um bom tempo, criando uma intimidade tipicamente brasileira com os patrões que lhe deixa à vontade em qualquer situação. Ao mesmo tempo, mantém o sonho da ascensão ao buscar um negócio próprio, que lhe traga a realização necessária.
Muito do relacionamento entre Madalena e seus patrões pode ser notado através de detalhes, sejam de tratamento ou mesmo de comportamento, que servem também de espelho da sociedade brasileira: na ânsia em também enriquecer, busca replicar a elite a todo custo, repetindo cacoetes sem refletir no porquê. A preferência ao estrangeiro em detrimento do nacional é apenas um exemplo, assim como a subserviência em relação a assuntos que não domina.
Diante desta realidade, é interessante acompanhar as mudanças de nuance não apenas em Madalena, como também nos demais funcionários, a cada hiato de um ano apresentado. A decomposição do cenário inicial não só é flagrante, como reafirma características tão comuns ao brasileiro quanto a adaptação e a união diante da adversidade - ao menos entre as classes sociais mais pobres, é bom ressaltar.
Repleto de sutilezas tão valiosas, Três Verões é um filme que se apropria da realidade brasileira para fazer um estudo microscópico sobre a falência de sua sociedade, ao menos em relação ao caráter humanitário em sua estrutura de patrões e empregados. Méritos também para Regina Casé, em uma persona bem parecida com a de seus programas na Rede Globo no sentido de buscar o jargão popular, como meio de comunicar, mas também capaz de emocionar. É dela a cena mais tocante do longa-metragem, bela também pelo mistério em torno de sua veracidade dentro da narrativa estabelecida. Bom filme, que tem muito a dizer sobre o momento atual do país.
Filme visto no Festival de Toronto, em setembro de 2019.