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https://vimeo.com/260129978
Crítica Marco Fialho
O cinema como manifesto da vida
Por parecer banal, a primeira imagem de "Fado Tropical" pode até passar despercebida pela maioria dos espectadores, por isso vale aqui resgatá-la. Nela temos um simbólico mar, esse mesmo que sempre nos separou e nos uniu, o entre, o que atesta as dualidades de nosso conturbado processo civilizatório. Vemos a personagem Isabel de Bragança (Patrícia Niedermeier) de frente para esse marzão. Impossível nessa aparente simples imagem não lembrarmos de Camões e de Pessoa, e o quanto esse mar carrega de significados de conquistas e opressões, tanto materiais quanto espirituais. "Fado Tropical" carrega esse mar metafórico com ele.
O ato de olhar para o mar nos remete e nos desperta sentimentos instantâneos que nos arremessam para o passado. Sim, esse é o lastro histórico que ele conclama, que ele convida e incita. Não casualmente, a imagem seguinte são fotos, exatamente aquelas já parcialmente desbotadas pelo tempo. A aparência enevoada da imagem física traz consigo um bafejo contraditório, pois intimamente faz acender algo de profundo, uma lembrança vivaz, presente e que inspira uma reconexão. "Fado Tropical" trabalha o tempo todo com sentimentos ambíguos, como imagens do passado e do presente, entre espaço físico e imaterialidade, obrigação e escolha, permanência e fugacidade, cinema e realidade. A fotografia do filme ratifica as imprecisões temporais, já que o predomínio do descolorido e do tom pastel nos remete a uma foto do nosso passado recente. A obra encerra a trilogia de viagens iniciada com "Salto no Vazio" (2017) e depois continuada com "Reviver" (2018).
O que mais impressiona em "Fado Tropical" é a sua capacidade de nos conectar o tempo todo com algo que está para além da história retratada de dois irmãos em busca de se reencontrarem emocionalmente. Sua universalidade se impõe quase que automaticamente a nós, pois o que está em jogo é a própria relação entre nossa história pessoal com a social. Separação, morte, ritual, ressentimentos, trabalho, celebração e afeto permeiam cada cena do filme, podemos dizer que somos embalados pelas imagens e sons que nos invadem de maneira arrebatadora. Em "Fado Tropical" o aspecto cinematográfico está pleno, muito bem concebido em homenagens explícitas, tais como o Festin e o espaço da Cinemateca portuguesa . Mas a passagem mais linda em que o cinema surge com exuberância são os planos do restaurante onde uma família portuguesa aparece em encantados enquadramentos em primeiro plano, que muito lembram o mestre russo Serguei Eisenstein e seu tributo aos rostos populares, com suas espontaneidades graciosas e felizes. E como este "Fado Tropical" nos reserva momentos de puro deleite, ora visual ora sonoro.
Esse é um trabalho em que podemos ver um visível amadurecimento artístico de Cavi Borges como diretor. Há uma leveza impressa em cada tomada. A inserção dos vídeos de infância são tocantes, assim como as interpretações precisas de Patricia e Caetano. Eles acertam sempre no tom, na intensidade e na qualidade do texto. Celebração e reflexão caminham lado a lado nessa obra inspiradora, que transborda afeto tanto no texto quanto na direção. Cavi faz do tempo o seu maior protagonista e vale mencionar que a montagem de Terêncio Porto consegue imprimir a presença imperativa do tempo, entendido aqui como fragmentos desordenados de nossa memória, que por serem assim alquebrados, emocionalmente, causam dispersão de nossas ações e escolhas. Alguns podem até supor e pensar que o filme é sobre o amor, mas não, é sobre o ato de amar e sua difícil rede de relações e suas dores incuráveis. A música brasileira "Naquela mesa", composta por Sergio Bittencourt para o seu pai (o compositor Jacob do Bandolim) no início dos anos 1970, muito sintetiza os sentimentos da personagem Isabel: "naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim". Cena a cena, "Fado Tropical" vai nos impregnando com sua vitalidade, sua ânsia de amar. Apesar do filme falar de um tempo elástico, é no presente, na sua visão de momento que ele nos ganha. O agora dele é fascinante, não apenas por apresentar um apuro visual, mas especialmente por nos agraciar com ternura, e olha que estamos precisando muito dela para sobreviver nesses amargos dias no qual estamos mergulhados.
A personagem Isabel Bragança representa a inconstância, o andar sempre para frente; já seu irmão Antonio (Jorge Caetano), o apego à tradição (inclusive a familiar). Antonio carrega literalmente o passado nas mãos, simbolizado pelas cinzas do pai, enquanto ela está sempre em fuga mirando no futuro e na produção de seus filmes, assume a vida como permanentemente transitória. Mas "Fado Tropical" pode ser visto também como um road movie incomum e inusitado por um Portugal belo e decadente. O trem é o transporte escolhido para as viagens dos irmãos. Os encontros e os aprendizados do caminho reafirmam a ideia de que o deslocamento dos corpos é transformador. A distância geográfica representa as incongruências das escolhas dos irmãos. O mar salienta e acirra as dores, ratifica fugas e maneiras de encarar as frustrações. Os planos escolhidos por Cavi sublinham uma certa contemplação, já que a maioria deles são fixos. A câmera opera na observação, não comenta, não acentua, respeita a relação dos atores entre si e com os cenários em que estão. Esses últimos sempre evocando um vínculo entre espaço e temporalidade. Ruínas, castelos, igrejas, o hospital de bonecas, quase sempre edificações históricas, marcadas pela ação do tempo.
A cena do hospital de bonecas é uma das mais emocionantes e cruciais. Lá o tempo se faz soberano. Não um tempo circunscrito a um sujeito, mas sim à própria humanidade. A profusão de corpos de plástico mais aparenta com um cemitério do que com um hospital. Assim como em "Toy Story", em "Fado Tropical", as bonecas são simbólicas do ciclo da vida. Tudo tem seu tempo e a constatação disso é aterrador. Isabel vive sempre para frente, não gosta de olhar para trás, portanto, a vida ali naquele lugar decrépito, que cheira à morte, é demais para ela. A infância nos reconecta às nossas origens, mas o preço a pagar é alto, pois ela também nos aproxima a um tempo estendido.
Afinal, o que importa na vida é a nossa conexão com o tempo, ela determina nossas escolhas. Por isso, não há personagens bidimensionais no filme, eles são fraturas de suas ações no passado e sempre indeterminados no futuro. Não há linhas retas e pré-constituídas, a vida deles, assim como as nossas, se dá no emaranhado da vida. Os fios da memória são fluidos, imprecisos e constantemente cruéis. Exterioridade e interioridade caminham juntos no precipício da vida e o roteiro de Patricia Niedermeier e Jorge Caetano tem consciência desse fato. Essa é a beleza da vida, uma dança do viver e reviver, um arriscar-se sem fim, um grande salto no vazio. E o bom cinema é isso, um espelho a nos revelar afetivamente as durezas e as celebrações da vida. Vendo "Fado Tropical", juntos com seus personagens, nos encontramos e nos perdemos em seus caminhos, exatamente como fazemos diariamente. O mar é movimento e também espelho. Ele é fluido, belo, mas sela também uma separação de corpos, estabelece a distância entre eles. O seu mistério e fascínio vem de sua força, pelo fato de ser incontrolável por nós humanos. Sua poesia se estabelece pelo o que dele nos escapa. Não percebemos, mas a poesia está sempre entre nós e raramente a vemos. Felizmente existe o cinema com o seu poder de nos revelar sua face mais encantadora e implacável. Lembrando que cinema que é cachoeira também pode ser mar.