Show de representatividade que fisga corações
por Katiúscia ViannaSundance, 2021. Um filme chamado CODA rouba todos os holofotes e principais prêmios do evento — sendo vendido pela bagatela de US$ 25 milhões, um recorde no festival. A trama destaca diversos personagens surdos; uma comunidade que vem lutando por espaço na cultura pop. Ele surge meses antes de O Som do Silêncio levar 2 Oscars. Também surge no mesmo ano em que a Marvel apresenta duas personagens poderosas surdas em Eternos e Gavião Arqueiro. Porém, aqui trata-se do retrato singelo de uma família, trazendo suas histórias para a nossa realidade. E nossos corações.
Qual é a história de CODA?
Com o título nacional No Ritmo do Coração, o longa é focado em Ruby (Emilia Jones), jovem de 17 anos que é a única ouvinte numa família de surdos (CODA é a sigla para Child of Deaf Adults, ou seja, filha de adultos surdos, em português). Ela passa dias trabalhando como pescadora ao lado do pai, Frank (Troy Kotsur) e do irmão mais velho, Leo (Daniel Durant); enquanto estuda no último ano do ensino médio. Junto com a matriarca Jackie (Marlee Matlin); eles vivem uma família feliz, meio deslocada da comunidade e considerada excêntrica.
Porém, Ruby esconde um segredo: ela adora cantar. Para se aproximar de um crush, ela decide entrar para o coral da escola, que fica sob os cuidados do exigente professor Bernardo Villalobos (Eugenio Derbez). A voz da protagonista chama a atenção do mestre, que a convence a fazer testes para uma escola renomada de música. Enquanto o tempo passa, fica cada vez mais difícil para Ruby conciliar seus sonhos com as responsabilidades que tem com sua família.
Para quem não conhece, No Ritmo do Coração é a adaptação hollywoodiana de um filme francês chamado A Família Bélier, de 2014. A grande diferença é que a versão americana realmente usa atores surdos para interpretar os personagens, trazendo uma experiência mais honesta para as telas — e que, provavelmente também influenciou o desenvolvimento do longa em seus bastidores.
No Ritmo do Coração é um show de representatividade
A minha experiência com esse filme começa quando eu ainda era uma estagiária de redação. Uma querida amiga minha recomendou A Família Bélier durante semanas na época, mas, como sou uma pessoa teimosa e esquecida, nunca cheguei a ver o longa francês. Quando anunciaram a versão norte-americana, logo surgiu aquela desconfiança básica, não é mesmo? "Lá vem Hollywood estragar as coisas..." Felizmente, tal suposição é bem errada. Tanto que, hoje em dia, eu sou a pessoa que insiste como minha amiga deve assistir este filme. Tomara que ela não deixe de ver CODA só por vingança, mas isso não vem ao caso...
O importante desse mini arquivo confidencial que acabei de compartilhar é que No Ritmo do Coração não tem a história mais original do mundo. Literalmente, já que é um remake. A grande diferença é a forma como contar essa jornada com algo novo; ou melhor, com algo que te conquiste, mas sem cair no exagero daqueles filmes com o objetivo de fazer o público chorar na marra. Existe um toque honesto na direção de Siân Heder (que também escreveu o roteiro), cuja sinceridade está nos detalhes, trazendo a experiência deles para os nossos olhares.
Obviamente, é um grande (e necessário!) passo escalar três atores surdos para formar a família de Ruby. Já passamos da época quando diziam que "não existiam artistas de tal tipo ou blá blá blá". Tem sim, só precisa procurar e dar chances. O uso da língua de sinais é usada de maneira natural, da mesma forma que é natural para os integrantes dessa família. Sua cadência faz parte da narrativa. Em determinados momentos, Ruby só sabe se expressar através disso. Com essa decisão, existe algo muito verdadeiro na construção desse grupo ao ponto de qualquer público possa se identificar. É mais do que representatividade, é também conectividade.
Ao mesmo tempo, é um filme que sabe explorar suas decisões musicais de maneira bem engenhosa. Quando Ruby e seu crush, Miles (Ferdia Walsh-Peelo), são convocados para cantar o dueto "You're All I Need to Get By"; é o tema perfeito para entoar o início do romance entre eles, despertando a química ali. Porém, é o uso de "Both Sides Now" que não decepciona. Vemos a protagonista treinando a canção ao longo do filme, então as expectativas eram altas para sua apresentação. Sem dar muitos spoilers, mas é um momento incrível que une os dois mundos da jovem.
No Ritmo do Coração traz um elenco incrível
Outro grande acerto do roteiro de Heder é que, aos poucos, todos os personagens principais apresentam suas respectivas complexidades. Vemos vários exemplos de situações que exemplificam as diferentes relações dentre eles, dando um prato cheio para seus intérpretes. Emilia Jones já é relativamente conhecida pela série Locke & Key, mas revela todo seu talento como a protagonista de CODA. É uma performance contida de uma menina tímida que está se descobrindo, ao mesmo tempo que deixa claro o amor dela por seus parentes. Até que ela solta sua bela voz e conquista ainda mais nossos corações.
Quem está recebendo bela atenção da temporada de premiações é Troy Kotsur, como o patriarca dessa família. Ele constrói um personagem divertido, meio desleixado, mas não cai na caricatura por trazer honestidade e compaixão em seu trabalho. Quem também emociona é Marlee Matlin, que fez história como a primeira atriz surda a ganhar o Oscar, por Filhos do Silêncio em 1987. Sua personagem também é uma pessoa boa, mas deixa seus medos afetarem a vida da família, por mais que a atriz demonstre o amor feroz que tem pelos seus filhos (e a paixão bem sensual e constrangedora que tem pelo marido). Daniel Durant completa bem essa família, segurando com firmeza os momentos mais dramáticos, sobre as frustrações de Leo em seu papel na casa.
Em "Both Sides Now", uma inexperiente Ruby canta a frase "I really don't know love at all", mas CODA é um filme sobre amor. O amor que sentimos pelas nossas famílias, mas também sobre o amor que deve ter por si mesmo, a fim de descobrir até onde pode crescer. É sobre o primeiro amor romântico de sua vida, mas também a paixão que sente por seu grande sonho. Num mundo tão cercado por sofrimentos e tragédias, é bom apreciar uma história sobre amor que deixe seu coração quentinho. Mas, principalmente, é incrível sentir o amor pelo próximo, não importa nossas diferenças.