O que veio antes, a vida ou a arte?
por Sarah LyraBárbara Paz e seu Babenco, Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou são a prova mais recente de que a arte não restringe, e de que é possível articular um discurso poderoso mesmo diante de limitações técnicas. Com uma voz que transcende a gramática cinematográfica, a diretora estreante se empodera daquilo que poderia ser um revés, e assume sua falta de experiência para transformá-la em linguagem. Em uma das cenas iniciais, quando Héctor Babenco ensina à Paz a relação entre distância focal e enquadramento, o documentário não evidencia apenas a afetividade do casal, mas também a estética que será adotada ao longo do projeto.
Para a diretora, a falta de um foco preciso, normalmente associado a um erro de fotografia, é a maneira encontrada para comunicar sua mensagem, e ao invés de tentar esconder essa característica, Paz a escancara. Assim, mesmo em cenas mais produzidas, quando o domínio sobre o equipamento já foi estabelecido, a direção parece intencionalmente desfocar alguns planos a fim de manter a coesão da obra. Também chama a atenção o uso da água como textura, que vai desde a lentidão das gotas de um soro hospitalar até a agitação das bolhas gerada pelo movimento das ondas, normalmente utilizada para ilustrar um estado de espírito conturbado ou de calmaria.
Paz também demonstra uma maturidade impressionante ao subverter as expectativas em relação ao tom do documentário, que tinha tudo para se transformar em uma coerção emocional, daquelas que obriga o espectador a chorar a qualquer custo. Aqui, a emoção é construída de forma orgânica, pautada mais no envolvimento com a figura retratada e sua característica espirituosa do que por truques narrativos empregados de forma gratuita. Torna-se extremamente prazeroso acompanhar as interações e diálogos entre o casal, mesmo em uma situação tão dolorosa para ambos. Com uma montagem que alterna entre cenas filmadas por Paz e sua equipe e cenas da filmografia de Babenco, os dois cineastas nos conduzem por uma trajetória de reflexões sobre a vida e a arte. “Não sei o que veio antes, viver ou filmar”, resume Babenco, sobre a importância do cinema em sua vida. Ele se mantinha vivo para filmar ou filmava para se manter vivo?
É interessante também observar como Babenco se surpreende com o processo que o conduzirá à morte. “Não é possível que seja isso”, dispara o cineasta, se dando conta de que não há qualquer romantização em chegar ao fim da vida. Essa mesma crueza se faz presente no documentário. De modo geral, o lirismo dá espaço a uma realidade tristemente banal, uma característica evidenciada principalmente em diálogos como aquele em que Babenco e Paz discutem sobre os inúmeros medicamentos que compõem o tratamento, assim como seus respectivos efeitos colaterais no paciente. No entanto, a percepção do protagonista é de que é preciso “ir vivendo”, sem se queixar. Consequentemente, o filme se torna mais sobre a maneira de Babenco de encarar os acontecimentos do que sobre os acontecimentos em si. Talvez por isso não exista a ideia, aqui, de uma linha temporal bem definida, e a direção tampouco comete o erro de se alongar enquanto tenta edificar o retratado. O poder de síntese do projeto é onde reside sua força, e ouvir Paz reforçar que não se trata de um filme “baseado em fatos” apenas reforça o discurso já visto em tela.
Babenco, Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou chega ao fim com a mesma teimosia e recusa de seu personagem-título em chegar ao fim. De maneira simples e tocante, Paz honra não o último mas um grande desejo do marido: transformar o dia de sua morte em um grande jantar, onde os amigos estão reunidos para comer, beber e compartilhar histórias. De certa forma, o documentário não se encerra, e nem a trajetória do cineasta. Em algum lugar do mundo, seja Hong Kong ou qualquer outro, Héctor Babenco ainda está vivo para filmar, ou filma para se manter vivo.
Filme visto durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.