Os amantes da ocupação
por Bruno CarmeloÉ interessante que, para retratar as ocupações de escolas por estudantes, após as ameaças de cortes de verba e fechamento de instituições em 2015, o diretor Diego da Costa tenha escolhido como protagonistas os dois alunos menos politizados de sua instituição fictícia. Eles são Ciro (Kelson Succi), aspirante a poeta e versão masculina das heroínas de comédia romântica (tropeça e cai e todo instante, fica paralisado diante da pessoa amada e diz besteiras), e Sofia (Fran Santos), a nerd da sala, bem aceita pelos amigos, porém muito mais preocupada com o ENEM do que com demandas de merenda escolar, infraestrutura e salários justos aos professores. A dupla demora a compreender o motivo para participar daquele movimento, mas acaba se juntando aos demais pelo senso de pertencimento a algo grandioso, coletivo, entre amigos. Para os protagonistas, o despertar político ocorre quase por acaso.
Esta abordagem se justifica pela tentativa de dialogar não com o público já convertido à causa, e sim com aquele que poderia se solidarizar com os movimentos estudantis. Adota-se um olhar externo, de quem não compreende ou não se importa: o espectador é convidado a adentrar o espaço de uma ocupação e descobrir que, apesar dos estereótipos de vandalismo, os alunos cuidam do espaço e organizam formas alternativas de aprendizado. Por isso, o tom adotado é cândido, idealista e um tanto romântico: o filme foge às questões partidárias, às decisões do governo, aos nomes específicos de gestores que motivaram as ocupações. Este universo pretende funcionar como exemplo atemporal de uma mobilização, e não como resposta a um evento específico. Os episódios de 2015 tornam-se o ponto de partida, não a finalidade do projeto.
A narrativa efetua um trabalho particular de tempo e espaço: poucos dias após a escola ser fechada, os alunos reclamam de uma pressão quase insuportável para saírem. Logo após desprezar a ocupação, Ciro deseja dormir dentro da escola, para ajudar ainda mais os colegas. Pouco tempo depois de desprezar o movimento, Sofia tem a coragem de cuspir na cara de um policial que ameaça entrar na escola. A gradação é trabalhada de modo abrupto, sem que o espectador compreenda a lenta conversão dos personagens à causa. Em paralelo, os espaços parecem um tanto vazios para uma mobilização geral (onde foram parar os outros alunos, da cena inicial, durante a maior parte da narrativa?) e o ambiente externo (as ruas, a pressão diária das forças da ordem) fica em segundo plano, mesmo numa trama em que a separação entre o dentro e o fora, entre o público e o privado são essenciais.
O espaço que o diretor filma com maior atenção é aquele da fantasia, no caso, os sonhos de Ciro e Sofia, em que se tornam manifestantes corajosos, de máscara no rosto, agindo sobre um pátio reservado a eles, em cima de um sofá esperando pela presença do casal. A propósito de espaços, as duas melhores cenas de Selvagem são aquelas que exploram com maior dinamismo as locações: o primeiro é a invasão policial, muito bem montada e fotografada; e o segundo, a apresentação de slam dos alunos durante uma festa, em longos planos sequência. As palavras são belas, fortes, e filmadas à altura da poesia daquele momento. Por instantes como estes, percebe-se o talento do diretor, que também demonstra bom trabalho de direção com o elenco – os coadjuvantes são realmente excelentes, com destaque para Paulo Pinheiro, Érica Ribeiro e Jady Maria Bandeira, que roubam a cena sempre que aparecem. Rincón Sapiência e Lucélia Santos fazem aparições afetuosas, em composições paterna e materna.
De resto, para um filme sobre a adolescência do século XXI, chega a surpreender que alguém ainda precise aprender a utilizar a câmera de um celular, ou que não se mencione beijos, drogas, sexo. Ao mesmo tempo, discute-se pouco a política em sua vertente pragmática – nunca se sabe ao certo com qual “autoridade” os alunos estão discutindo, ou de que forma um advogado anônimo consegue a aguardada liminar. Selvagem aproxima-se do universo fabular, marcado por algumas facilidades e atalhos de roteiro destinados a tornar a mensagem final ainda mais clara. Ironicamente, trata-se de um filme doce sobre um momento de furor, uma obra moral sobre uma discussão essencialmente política.
A conclusão, pouco otimista, pelo menos impede que o ponto de vista se torne ingênuo demais, ainda que não aponte caminhos para a continuação da luta – os alunos apenas deixarão de contestar? Ao invés de buscar as origens do problema ou apontar suas consequências, o projeto prefere jogar o tema para seu espectador, humanizar os participantes de ambos os lados (são belas as cenas em que a diretora baixa o tom da voz, ou quando o pai reacionário se mostra realmente preocupado com a saúde da filha) e deixar que o trabalho de reflexão se desenvolva do outro lado da tela. Este filme sobre adolescentes visa dialogar ao mesmo tempo com os jovens e os pais, rompendo polaridades e extremismos pela chave do afeto.
Filme visto no 14º Festival Latino-Americano de Cinema de São Paulo, em julho de 2019.