O filme sobre o filme
por Barbara DemerovMank é um dos filmes mais autorais e intimistas do diretor David Fincher. Não à toa, o roteiro é assinado pelo próprio pai, Jack, que o desenvolveu ao lado do filho por muitos anos. O projeto demorou um tempo para encontrar a luz de uma estreia, mas agora chega às telas da Netflix ao redor do mundo no momento ideal, em que produtores e espectadores estão cada vez mais interessados por projetos que seguem a cartilha do "menos é mais".
Mas não é porque Mank foi filmado em preto e branco, possui som mono ou custou cerca de 30 milhões de dólares que a produção não é capaz de garantir um forte impacto no espectador. Afinal, a revisita de Fincher à Era de Ouro em Hollywood e ao processo de criação de Cidadão Kane, um dos maiores clássicos de todos os tempos, não se limita ao que aquele determinado período representa no imaginário de quem trabalha na área ou é fã de cinema. Entre um e outro fade in/out há muito o que se observar em uma obra que não possui um grande clímax, mas que distribui grandes momentos em diálogos pontuais.
Mank possui roteiro enérgico escrito pelo pai de David Fincher
É em cada detalhe na imagem, no som e no estilo de atuação de seu elenco que o diretor de Seven e A Rede Social busca trazer uma reconexão com o passado a fim de contar uma história consistente, que nunca se limita à definição de "homenagem". Com o roteiro afiado do pai, Fincher se dedica a mergulhar não só nos moldes daquela época como também nos pensamentos individuais de cada personagem, em suas batalhas pessoais, no movimento cultural e comercial pré-Segunda Guerra e, claro, na busca de um autor por aprovação e perfeição.
O autor no caso é Herman Mankiewicz, roteirista creditado por Cidadão Kane mas que se absteve do reconhecimento em diversos filmes - como O Mágico de Oz, por exemplo. Mank, como é chamado pelas pessoas ao seu redor, é interpretado aqui por Gary Oldman, que entrega mais uma demonstração de que seu talento para personificar figuras reais é nato. O tratamento que o roteiro de Jack Fincher dá ao personagem o transforma no carro-chefe do filme como um todo, pois é através de seu olhar focado em Hollywood e suas estrelas que o espectador acompanha esta jornada.
Ao introduzir personagens importantes para a criação de Cidadão Kane, como o diretor Orson Welles, o magnata William Hearst e a atriz Marion Davies (sendo os dois últimos grandes inspirações para o filme), Mank destaca seu papel histórico - mas sem pesar muito na glamourização da época, que fica em segundo plano. Acima de qualquer riqueza ou reconhecimento, aquelas pessoas são retratadas como reais e, claro, insatisfeitas com suas participações indiretas no roteiro de Herman.
Fincher dá mais destaque à jornada pessoal de Mankiewicz do que ao glamour da Era de Ouro
Somando à polêmica de Hearst e Mank (que resulta em uma das melhores cenas do filme, em um monólogo do protagonista bêbado em um jantar), temos também a controvérsia referente ao próprio roteiro de Kane, já que Welles sempre clamou que escreveu o texto em conjunto com Mank. Porém, o filme de Fincher foca inteiramente num processo em que apenas o protagonista desenvolve, na companhia de sua secretária e datilógrafa (Lily Collins).
Mank exerce seus papéis de desconstrução e de retratação de eventos reais de maneira ágil, o que mantém a curiosidade até o fim. Sem apoiar-se na expectativa da presença de Welles ou da Era de Ouro, o filme encontra um caminho mais pessoal e internaliza as camadas de uma época de descobertas e esplendor.
Seguindo o olhar íntimo e crítico de um protagonista cético, a nova obra de David Fincher fecha o ano de 2020 destacando questionamentos ainda atuais (como na discussão política em que as intenções de Hitler são descreditadas) e o verdadeiro mérito que um autor busca em sua essência. Apesar de não ser o mesmo divisor de águas como o filme que retrata nos bastidores, Mank ganha peso por sua execução que emula uma época distante de forma original. E chegar a esse resultado não é uma tarefa tão fácil.