O passado no presente
por Barbara DemerovO primeiro trabalho de Regina King como diretora no cinema não chega a ser nada muito extravagante, tampouco parece ter sido idealizado puramente para impressionar seu público a fim de demonstrar domínio em técnica ou na temática escolhida. Mas acontece que One Night in Miami, um dos primeiros filmes a serem exibidos no Festival de Toronto 2020, é um ótimo início para esta nova fase da carreira de King exatamente por estes dois motivos.
Ao imaginar o que poderia ter se passado em uma noite de reunião e comemoração entre quatro amigos - que acabam por ser Malcolm X, Cassius Clay (Muhammad Ali), Jim Brown e Sam Cooke -, a diretora adapta a peça teatral homônima de Kemp Powers, lançada em 2013, e transporta discussões que ainda permanecem atuais e relevantes para dentro de um quarto de hotel. Seu filme se passa, na maior parte do tempo, dentro daquele quarto, enquanto King brinca com a dinâmica dos quatro personagens. Sua atenção está bastante focada no que eles têm a dizer, e a condução agradável impede a sensação de quebras de ritmo por conta dos diálogos longos.
A intensa discussão sobre racismo, luta por direitos iguais, o papel de cada um deles enquanto homens negros e até mesmo a imagem controversa de Malcolm X permeiam a narrativa, mas com um complemento interessante: as conversas oscilam no tom quando o grupo se divide em dois e, ao mesmo tempo, se complementam aos olhos do espectador, que passa a ter uma noção embasada da visão pessoal de cada personagem. É possível entender a intenção de Malcolm ao tentar unir forças pela última vez, enquanto os atos do músico Sam Cooke não deixam de ser compreensíveis -- especialmente em uma época em que a população negra era literalmente excluída.
One Night in Miami proporciona uma experiência imersiva para um período que, de tão sombrio e complexo, fez com que uma parcela da população passasse a lutar (contra os racistas e contra eles mesmos) por algo que nunca deveria estar em pauta em primeiro lugar. Por isso, chega a ser incômodo acompanhar a evolução da conversa entre o quarteto, ao mesmo tempo em que é edificante pensar o quão isso era necessário naquela noite, em um cenário concebido com tanta verdade dentro da ficção. O cuidado de King para com seu elenco e a forma como conduz os diferentes níveis da conversa só crescem com o passar dos minutos.
O discurso e as ideias que Malcolm lidera na trama condensam toda uma geração que precisava lidar com um fardo complexo: a vontade de fugir de um eventual futuro violento, cobrindo resquícios de sua própria identidade e cultura, e o sonho de transformar a realidade em algo mais positivo. Após assistir a One Night in Miami o sentido do título ganha mais camadas, uma vez que não se trata somente de uma noite entre amigos que pensam o mesmo -- mas que precisam de ajuda para agirem da melhor forma diante de questões que os envolvem diretamente.
Segundo o olhar de Regina King, estes profissionais de campos tão distintos se engajaram nos papéis de líderes e ouvintes, e vice-versa. Como resultado, a mudança passou a existir. Apesar de não ser uma mudança tão palpável (especialmente pela lembrança sempre presente do assassinato de Malcolm X), a diretora homenageia os movimentos sociais e políticos que ganharam protagonismo desde a década de 60 e permanecem em voga até hoje. É como se os personagens tivessem sido transportados para um hotel no século XXI sem saber -- algo que fica explícito com o roteiro, que toca na importância de se impor em tempos decisivos. Há muito do presente nesta revisita ao passado.
Filme visto durante o Festival de Toronto, em setembro de 2020.