O fim do luto
por Sarah LyraEm determinadas ocasiões, diretores experientes como Werner Herzog podem se dar o luxo de comandar obras que, em essência, comunicam mais para si do que para um público externo. O documentário Nômade: seguindo os passos de Bruce Chatwin é um desses casos, apresentando uma jornada muito mais pautada nas necessidades emocionais do que artísticas do cineasta. É como se, em forma de homenagem, Herzog buscasse alcançar o último estágio do luto com o qual convive há 30 anos, desde a morte precoce do amigo Bruce Chatwin, o aclamado romancista e escritor de viagens que dedicou anos de sua vida à prática nômade.
Como ponto de partida, Herzog elegantemente intercala duas narrações: a dele próprio, e a leitura de trechos escritos e gravados por Chatwin. De um lado, a voz do diretor guia o espectador pelo fazer do filme e simultaneamente contextualiza sobre a vida e obra do escritor. Chatwin, do outro, dita o tom melancólico e contemplativo do filme, a partir da leitura de textos que ele mesmo escreveu. Juntos, eles dialogam no decorrer da trama, e é quase possível esquecer a ausência física do segundo, principalmente quando surgem em tela os depoimentos sobre Bruce, enriquecidos em grande parte pela presença de sua viúva, Elizabeth Chatwin, e do biógrafo Nicholas Shakespeare.
É notável que, mesmo com uma enorme bagagem cinematográfica, Herzog se dê a liberdade de não adotar uma forma necessariamente polida. Aqui, a jornada, ainda que algumas vezes pareça um rascunho em busca de refinamento, é o mais importante, e o diretor não tenta esconder isso. Note como, na cena em que recebe um importante objeto de Chatwin em mãos, o diretor interrompe a fala do biógrafo para dar ao cinegrafista o tempo necessário para cravar o foco da câmera. “Conseguiu?”, pergunta o diretor ao profissional, deixando claro que este momento, facilmente removível na montagem, é parte de seu processo criativo. O resultado, apropriado diante da temática nômade, é a sensação de estarmos diante de um diário de bordo, principalmente quando algumas notas explicativas são adicionadas para costurar os diferentes segmentos da narrativas, aqui divididos em oito capítulos que funcionam como crônicas da vida nômade de Chatwin.
Mas é ao entrelaçar a filmografia de Herzog com a amizade dos dois homens que Nômade realmente ganha vida. Sendo ambos devotos ao pensamento crítico e ao conhecimento cultural, é natural que tanto os livros de Chatwin quanto os filmes de Herzog tenham sido influenciados pelo relacionamento. Assim, o cineasta cita pontos específicos de sua carreira que tiveram participação, direta ou não, do amigo escritor, como o fato de terem se conhecido durante as filmagens de Onde Sonham as Formigas Verdes; o longa No Coração da Montanha ter sido dedicado a Chatwin; e o envolvimento do escritor na adaptação de seu romance O Vice-Rei de Uidá, que sob o comando de Herzog se transformou no filme Cobra Verde.
Com uma qualidade impressionante na captação das imagens de paisagem, Nômade: seguindo os passos de Bruce Chatwin une uma série de elementos que, em princípio, poderiam ser conflitantes. Graças à experiência de Herzog, no entanto, eles se tornam fundamentais para navegar pela história de dois grandes artistas, uma amizade tocante, os frutos por ela gerados e a relação de tudo isso com a natureza e a vida nômade.
Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.