Construindo a acusação
por Bruno CarmeloEste documentário parte das melhores intenções: denunciar os crimes ambientais referentes à mineração, em especial o desastre da Samarco em Mariana. O diretor André d’Elia pretende demonstrar que as empresas tinham plena consciência do risco de rompimento das barragens, mas ignoraram os alertas por motivos financeiros, em conivência com os prefeitos e governadores de Minas Gerais e Espírito Santo, além do governo federal. Além disso, dá voz aos moradores e pescadores afetados pelo mar de lama, tendo perdido as suas casas, e dependendo da ajuda simbólica da própria Samarco para sobreviverem.
A proposta se mostra ambiciosa em sua esfera histórica, política, sociológica e psicológica. Infelizmente, os recursos empregados para o projeto são fracos, a começar pelos aspectos técnicos. Durante as dezenas de entrevistas com especialistas, dentro de espaços fechados, a direção de fotografia se contenta em jogar um forte foco de luz no rosto do entrevistado, desprezando as sombras profundas, o reflexo dos refletores nos óculos, a textura ressaltada das peles. As imagens sofrem com a captação de baixa qualidade, o trabalho desigual de iluminação e correção de cor, a câmera procurando o enquadramento durante um depoimento de caminhoneiros enquanto a iluminação automática da câmera hesita entre a superexposição e a subexposição.
Neste território da urgência, vale aplicar imagens em grande angular durante a fala dos moradores, pisando sobre a lama, para depois voltar às objetivas normais sem grande justificativa; vale revelar a sombra da câmera projetada no solo; vale usar imagens repetidas (os livros no chão, cobertos de lama); vale incluir cenas cujo som é praticamente inaudível (o depoimento de Maury de Souza Jr.). Para a direção, é evidente que o conteúdo das falas se sobrepõe à importância das imagens, desculpando-se assim o pobre agenciamento estético e técnico. Quando um corte interrompe a cena no instante exato em que o personagem abria a boca para pronunciar a palavra seguinte, conclui-se a impressão de um projeto realizado às pressas, que seria beneficiado de maior cuidado de pós-produção.
O privilégio do conteúdo em detrimento da forma se traduz na montagem. O Amigo do Rei parece se encaixar no caso em que os criadores se apaixonam tanto pelas falas de seus entrevistados – e, de fato, há muitos discursos contundentes – que se nega a abrir mão de certas passagens. O resultado é um projeto inchado, cujos 142 minutos de duração soam contraproducentes, já que a redundância prejudica a evidente intenção didática. Uma tarefa básica da montagem seria sacrificar alguns dos bons momentos em nome da fluidez, da coesão, e da eliminação de repetições. Ora, a montagem sequer dissocia som e imagem para produzir qualquer efeito poético: o som mantém-se fielmente preso à sua imagem de origem, de modo pouco inventivo.
Ainda mais questionáveis são as inserções fictícias dentro do projeto. Esta não é uma obra “híbrida”, como tantos filmes nacionais em que a ficção e o documentário se misturam, e sim um documentário interrompido por esquetes fictícias de natureza cômica, na qual a caricatura do político corrupto (interpretado por Luciano Chirolli) demonstra o seu desprezo pelo povo, compra o voto de lobistas, abusa da secretária (enquanto a câmera filma a longa cena de assédio com o enquadramento no traseiro da pobre atriz). Estas intromissões incomodam menos pelo aspecto grosseiro da mise en scène do que pelo modo como desprestigiam o documentário ao seu redor. A farta pesquisa e as inúmeras entrevistas são claríssimas por si próprias, mas a chegada da ficção trata de sublinhá-las, como se o público não fosse capaz de compreender a acusação sem esta ajuda didática, ou se as imagens documentais não fossem suficientes.
Para a nossa surpresa, ao final, o político corrupto ainda tira a sua peruca e revela o ator por trás do personagem, afirmando que gostaria de não precisar abordar essa questão no país atual. Em outras palavras, ele lamenta a corrupção, o descaso com as pessoas e com a natureza – algo que o projeto já vinha fazendo nos últimos 140 minutos. O Amigo do Rei começa no panfleto pedagógico (o filme é “parte de um projeto de informações”, afirma os letreiros iniciais), envereda pela denúncia (mostrando o sofrimento dos moradores para só então explicar o que são barragens), chega então ao deboche e se conclui na constatação simplificada da vilania humana. Certamente, traz à tona um debate importante, com ótimos depoimentos e utilização competente de animação, mas se perde no ritmo, na linguagem, no tom. Na ânsia de ser claro e urgente, sacrificou aspectos fundamentais do discurso artístico.