Ambição como linguagem
por Sarah LyraA Noite Amarela é um filme que, inicialmente, gera um certo receio no espectador por conta da ambição que carrega diante de uma visível limitação técnica, com potencial para se tornar um empecilho irreversível para a imersão proposta pela trama. Felizmente, não é o caso. O cineasta Ramon Porto Mota apresenta um controle admirável ao se apropriar daquilo que poderia ser um problema. O aspecto “sujo” e de baixa luminosidade na fotografia em algumas cenas, quase como se estivesse em arquivo cru, sugere que a produção carece de um grande orçamento, mas Mota subverte as expectativas ao adotar essa característica áspera como linguagem para compor seu universo, que é apresentado a partir da viagem de um grupo de sete amigos a uma ilha no litoral nordestino para comemorar o fim do Ensino Médio. A partir do momento em que chegam no local, algo imediatamente parece fora do lugar, e a partir dessa premissa Mota nos conduz por um filme muitas vezes intimista, mas também pautado em um terror bem dosado e articulado.
É sempre impressionante observar como uma restrição, seja qual for, obriga a arte a buscar caminhos criativos para se fazer expressar. Neste projeto, a montagem é uma forte aliada da mensagem e do processo criativo. Para criar suspense, Mota adota repetições de quadros previamente mostrados para ilustrar a natureza estranha da ilha onde os acontecimentos se passam. Não há, aqui, uma história no sentido mais tradicional, o engajamento cotidiano entre os personagens configura o foco da narrativa. Mais do que um terror, A Noite Amarela é, por mais surpreendente que isso possa parecer, um filme sensível sobre amizade. Observar a convivência entre esses adolescentes, o desenvolvimento de suas particularidades e o humor pautado nos regionalismos é um deleite à parte — principalmente em toda a sequência no posto de gasolina.
A referência lynchiana também é um dos destaques no trabalho de Mota, principalmente no que pega emprestado de Eraserhead. Note como o movimento de câmera que mergulha em direção à escuridão, a trilha sonora muitas vezes indecifrável — mas que ao mesmo tempo lembra um som ambiente — e as sobreposições de imagens durantes as transições são referências claras à linguagem de David Lynch no filme de 1977.
No que diz respeito ao entrelaçamento quântico, o filme apresenta o conceito de forma breve a partir de um vídeo inserido para contextualizar acerca do que pode estar por trás dos acontecimentos na ilha. Sem delongas, Mota é inteligente ao não tornar o segmento excessivamente explicativo. Ao abordar o que Albert Einstein chamou de “ação fantasmagórica à distância”, o diretor busca evocar sensações mais do que necessariamente explorá-las intensamente. Assim, é inevitável que A Noite Amarela se torne, essencialmente, um filme de pegada experimental e contemplativa. Enquanto muitos diretores teriam cedido à tentação de se aprofundar na pompa do complexo tema, Mota entende que a ausência de uma compreensão total pode funcionar a favor de sua obra.
O terço final é particularmente bem executado. Quando decide separar o grupo para mostrar seus membros em jornadas individuais (ou em duplas) em busca da amiga desaparecida, o filme atinge o ápice do suspense, com usos bem justificados de tela dividida — um recurso quase sempre subutilizado pelo cinema. A cena em que dois amigos “se perdem” mesmo estando exatamente no mesmo lugar, e o movimento do farol em um cenário de total escuridão, se mostram decisões não apenas acertadas como extremamente maduras para agregar à estética e tom da narrativa. Experimental e bem executado, A Noite Amarela é uma obra que evoca inquietações, reflexões e temores, e se coloca de maneira ousada diante de seu espectador, um risco que certamente se paga.