Primoroso registro de um período incendiário do Rock ‘N’ Roll, ao mesmo tempo em que narra a trajetória improvável, mas bem-sucedida de um adolescente aspirante a jornalista. Assim pode ser definido o filme Quase Famosos, lançado em 2000 pelo diretor Cameron Crowe que, nos anos 1970, começou a exercer, com apenas 16 anos, a função de correspondente (que mantém até hoje) para uma certa revista mensal que iniciou sua circulação em 1967 e que, com o passar dos anos, se tornou uma das mais prestigiadas do mundo quando o assunto é música, simplesmente a Rolling Stone. Em 1975, já com 18, Crowe via publicada na revista a longa entrevista que fez com o Led Zeppelin, fruto de duas semanas que passou com a banda, durante sua turnê pelos EUA.
Para contar uma história inspirada na sua própria, Crowe criou um alter ego, o jovem William Miller (Patrick Fugit). De formação mais intelectualizada do que a média, e de aparência nem um pouco ‘cool’, ele inicialmente escreve artigos sobre música que são publicados no jornal da escola, e posteriormente também na revista Cream, onde trabalha o crítico musical Lester Bangs, um dos melhores profissionais do ramo (que realmente existiu, e no longa foi vivido pelo talentoso e saudoso Philip Seymour Hoffman, ganhador do Oscar de Melhor Ator em 2006 por Capote), com quem faz amizade. Por obra do acaso, Miller acaba conhecendo pessoalmente também a banda em ascensão Stillwater (da qual já era fã), cujos integrantes imediatamente percebem o quanto o menino é mesmo entendido do assunto. O guitarrista do grupo, Russell Hammond (Billy Crudup, o Doutor Manhattan de Watchmen) acredita que seria bom tê-lo por perto escrevendo sobre eles, mesmo sendo um ‘inimigo’, fazendo alusão à eterna discórdia entre artistas e imprensa, e acaba convencendo os demais membros da banda a aceitá-lo. Nisso, os bons textos já escritos pelo garoto são lidos por um editor da Rolling Stone, que o convida para escrever para a revista. Então, mesmo com todas as ressalvas da mãe conservadora e ‘assustadora’ (Frances McDormand, oscarizada em 1996 por seu papel em Fargo) o pequeno William, com apenas 15 anos, mas fingindo ter 18, deixa San Diego e pega a estrada, a bordo do ônibus da banda Stillwater, para cobrir sua turnê pela América.
Outra personagem fundamental dessa história é Penny Lane (Kate Hudson), a groupie que tem ‘um lance’ com Russell, e que surge na vida de William na mesma noite em que o rapaz conheceu o Stillwater. O estilo de vida festivo da moça (que não revela seu verdadeiro nome a ninguém que não seja de sua extrema confiança) é absurdamente oposto ao dele, mas desperta no adolescente sentimentos com os quais terá que saber lidar, enquanto desenvolvem uma inicialmente saudável amizade, durante os muitos dias que passam com a banda ‘quase famosa’ em seu ônibus, nos hotéis e, claro, nos shows. Entre as várias outras groupies, amigas de Penny Lane, uma delas desempenha um papel que, embora ocupe pouco tempo de tela, é de vital importância para o amadurecimento do jornalista precoce (entendeu?). Trata-se de Polexia, vivida por Anna Paquin que, em 1994, com apenas 11 anos de idade, ganhou o Oscar de Atriz Coadjuvante por O Piano, e que o público mais recente conhece pelo papel da Vampira na primeira trilogia dos X-Men. Merecem menção ainda no ótimo elenco a irmã mais velha de Miller (Zooey Deschanel, sósia de Katy Perry) e o novo produtor da banda que promete alçá-los a vôos mais altos, literalmente (interpretado por Jimmy Fallon, atual apresentador de um famoso talk show da TV americana).
Essa prazerosa empreitada cinematográfica, regada a pitadas de road movie, com personagens cativantes e situações que colocam o expectador no auge da efervescência setentista que define a tão famosa expressão “sexo, drogas e Rock ‘N’ Roll” não seria completa sem a autenticidade que foi dada ao grupo fictício criado especialmente para o filme. Inspirado por três bandas que marcaram a juventude do diretor, Allman Brothers, Lynyrd Skynyrd e Led Zeppelin, o Stillwater possui características, tanto pessoais quanto musicais, de cada uma delas. O próprio Crowe, sua então esposa Nancy Wilson e a irmã dela, Ann, ambas integrantes da banda Heart, e o veterano astro do Rock Peter Frampton formam o time de mentes que compuseram as canções do conjunto fictício. Frampton (que faz até uma rápida ponta no longa) participou ainda das gravações do repertório da banda. Mike McCready, guitarrista do Pearl Jam, é outro músico de calibre que também colaborou em estúdio para o som do Stillwater ganhar vida na telona. A banda liderada por Eddie Vedder, inclusive, participa de outro filme marcante do diretor, Vida de Solteiro, lançado em 1992, cuja ambientação resgata o surgimento do Grunge no início daquela década. Crowe dirigiu ainda Pearl Jam Twenty (ou PJ20), documentário lançado em 2011 sobre a história desta cultuada banda de Seattle.
Quase Famosos ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Original, que também é assinado por Crowe, cineasta que notoriamente possui uma identificação sensorial com a música, e ainda mais intimamente, com o Rock. Pois, além das cinco canções executadas pelo Stillwater, a trilha sonora é totalmente composta por músicas da época, algumas clássicas, outras nem tanto, mas todas em absoluta sincronia com o que se vê na tela. Desde as maravilhosas ‘porradas’ do Black Sabbath, Deep Purple, The Who e Led Zeppelin, passando por Simon & Garfunkel, Yes e David Bowie (que causa tumulto quando ‘é visto’ em um hotel), até as mais dóceis como “Tiny Dancer”, de Elton John e “My Cherrie Amour”, de Stevie Wonder, essas duas tocadas em momentos-chave do longa, todas compõem o lúdico elemento melodioso que se faz presente em todo o tempo e ilustra tão bem a atmosfera nostálgica em que se dão os acontecimentos narrados na projeção.
Curiosidade: é desse filme que foi extraída uma cena que há alguns anos se tornou meme entre estudantes de jornalismo e profissionais da área. Nela, o vocalista do Stillwater, Jeff Bebe (Jason Lee), que vive disputando a liderança da banda com o muito mais carismático guitarrista Russell, contesta o apreço que este sente por Miller, pois incentivou o garoto a viajar com a banda e, com isso, ele viu de perto os comentários nada inspirados, as discussões e as crises de ego dos seus integrantes, elementos que, se colocados no papel, poderiam por a perder todo o prestígio que a banda estava apenas começando a construir. É quando Jeff diz: “Ele não era gente! Era jornalista!” Frase que marcou o surgimento de um meme impagável!
Há uma versão estendida desta produção, com cerca de 40 minutos a mais, é a Edição do Diretor, que foi lançada no Brasil, juntamente com a original dos cinemas, em um DVD duplo. Ao vê-la, o expectador nem sente esse tempo acrescido, tamanho é o acerto na montagem, complementando cenas que já estavam e acrescentando outras de forma tão orgânica que só tornam a experiência ainda mais enriquecedora, tanto do ponto de vista narrativo quanto visual e, evidentemente, sonoro. Este não é apenas um filme sobre um jovem de 15 anos precocemente contratado pela Rolling Stone para entrevistar uma banda de Rock em turnê. Trata-se de uma belíssima história de descobertas, de relacionamentos, de amizades, de amores, e preenchida por momentos alegres, divertidos e poéticos que tornam Quase Famosos quase uma fábula, ambientada longe do ‘mundo real’ do qual Penny Lane insiste em não querer fazer parte.