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    Armageddon Time
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Armageddon Time

    Para todas as crianças que não se encaixam

    por Aline Pereira

    Em 2021, Kenneth Branagh foi um dos principais destaques do Oscar com Belfast, filme inspirado em sua própria infância, e tudo indica que o diretor James Gray pode seguir pelo mesmo caminho com Armageddon Time, um dos destaques do Festival de Cannes 2022. Com um elenco de grandes estrelas que inclui Anthony HopkinsAnne Hathaway e Jeremy Strong, o cineasta responsável por Ad AstraZ - A Cidade Perdida aposta em um projeto pessoal e imersivo que se inspira muito em sua própria história de amadurecimento no final da década de 1970. 

    Armageddon Time acompanha a história de Paul Graff (Banks Repeta), um garoto nova-iorquino da sexta série que quer ser um artista famoso - uma conquista que ele espera conseguir por merecimento, mas sem tanto esforço assim. Rebelde e levemente confiante demais, mas carismático à sua maneira, Paul se distrai facilmente na escola, o que faz com que ele entre na mira de um dos professores. É quando se aproxima de Johnny (Jaylin Webb), colega de classe com quem divide muitas semelhanças, mas também uma diferença que guia a relação entre eles: Johnny é uma das poucas crianças negras da escola. 

    Armageddon Time expõe temas grandes em um mundo pequeno 

    A amizade com Johnny é um dos principais fatores para o amadurecimento de Paul e a relação entre os dois coloca nas telas uma discussão sobre preconceito racial, que era uma questão nos anos 70 e continua sendo hoje. Os dois se conectam pela personalidade forte que se destaca do restante, mas quando a situação aperta, a punição é sempre maior para Johnny. Como um garoto branco da classe média, Paul tem mais “direito” à rebeldia, mesmo enfrentando a fúria dos pais em casa, do que seu colega - a perspectiva de futuro para ele é quase nenhuma. 

    James Gray expõe essa desigualdade através do olhar infantil de Paul: muito jovem e cercado de privilégios, o menino vai entendendo que Johnny não faz parte daquele universo disfarçadamente preconceituoso que o cerca, mas não compreende exatamente a profundidade dessa separação e nem quais são as consequências para o colega. O olhar ingênuo traz sensibilidade e emoção à história: o cineasta não discute o assunto de forma mais ampla ou didática, mas o foco naquele pequeno universo particular dos dois meninos também tem sua potência - mas é preciso disposição para enxergá-la. 

    Em seu memoir, um projeto profundamente pessoal, Paul é a estrela, mas é de se pensar também sobre o uso do personagem de Johnny mais como uma espécie de escada para o amadurecimento do protagonista do que como figura autônoma. Por vir de um contexto desigual, é ele o melhor amigo que se dá mal ao fazer exatamente as mesmas coisas que Paul e, no fim, está lá para que o garoto branco aprenda (e ensine) uma lição sobre preconceito de classe e de raça. Representação de uma realidade ou muleta narrativa? 

    Para todas as crianças que não se encaixam 

    Com 14 anos de idade, Banks Repeta é um dos jovens artistas para ficar de olho: com passagem por Lovecraft Country e O Diabo de Cada Dia, há uma doçura e inocência hipnotizantes nele. Impossível não se afeiçoar. Paul é uma representação de todas as crianças que não se encaixam e cujas mentes vão longe na criação de cenários irreais. Sua predisposição claramente artística e criativa não é vista com bons olhos pela família - um conflito praticamente universal: algumas carreiras profissionais são mais rejeitadas do que outras. 

    Com pouquíssima autonomia para tomar as próprias decisões, Paul sai da escola pública para a particular por pressão da família e continua não se encaixando - mas agora com uma pressão muito maior sobre suas costas. O pré-adolescente toma decisões questionáveis para tentar aliviar a própria barra em alguns momentos e pensa que está agindo com esperteza quando, na verdade, está sendo ingênuo - nada mais realista do que isso para uma pessoa de 13 anos de idade. 

    Assim como no indicado ao Oscar Belfast, a visão infantil sobre os problemas do mundo é o que mais nos toca: há questões graves acontecendo e elas afetam a todos, inclusive às próprias crianças, mas a simplicidade como elas enxergam o universo ao redor é o que torna tudo mais próximo e pessoal. Uma interpretação que podemos estender também a Johnny: embora o personagem de Jaylin Webb venha através da visão de Paul, não é difícil vê-lo com uma conexão forte - talvez maior do que a do protagonista - com a vida real.

    Armageddon Time tem um elenco brilhante 

    Com uma das carreiras mais memoráveis de Hollywood, Anthony Hopkins é o avô de Paul, Aaron, em Armageddon Time. Carinhoso e próximo do neto, é ele quem acaba transmitindo alguns dos valores mais importantes - em um dos momentos, por exemplo, Aaron é quem chama atenção do menino para o fato de que ele não defendeu Johnny de um ataque de bullies da escola. Enquanto os pais de Paul parecem os adultos distantes, o avô simboliza a conexão com a própria história e com o legado que se quer deixar. 

    Vencedor do Emmy por Succession, Jeremy Strong é o pai da família, uma figura que passa quase despercebida, até que um rompante de agressividade revela novas camadas de sua relação com o filho - certamente, uma das cenas mais fortes do filme. Enquanto isso, Anne Hathaway é Esther, a mãe: o longa não se aprofunda em sua história diretamente, mas fornece muitos elementos fortes para que possamos preencher essa lacuna. 

    Com a família, James Gray também ilustra uma questão social latente: os Graff são progressistas e estão desolados com a perspectiva da eleição do conservador Ronald Reagan, mas são, eles mesmos, conservadores em muitos de seus costumes, o que fica claro com a aproximação de Paul e Johnny. Os pais se declaram contra qualquer tipo de preconceito - mas também não querem Johnny tão perto assim. 

    Com um tom íntimo, Armageddon Time traz uma sensação de nostalgia mesmo para quem vem de uma vida completamente diferente porque Paul é uma criança que parece ter saído de um desenho animado e nos evoca uma simpatia imediata. Ao mesmo tempo, a trama de forma geral pode ter dificuldade para romper o distanciamento com boa parte do público - James Gray não se propõe a ir além de uma história poética e nem a trazer recursos específicos para isso. Fica para o público, e sua vivência, deixar a conexão chegar. 

     

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