Reprodução da solidão
por Barbara DemerovÀ primeira vista, o fato de o filme Meu Pai ser uma adaptação da peça teatral homônima pode deixar alguns cinéfilos com o pé atrás. Há diversos longas que se originaram dos palcos, mas uma parte deles adapta cada história tão fielmente que a capacidade do cinema em evocar elementos audiovisuais marcantes não é tão aproveitada. O uso de câmera, uma boa montagem e a utilização de um período de tempo mais extenso (sem parecer que estamos observando uma história sem cortes) são algumas características que diferenciam o teatro do cinema -- e isso é algo que a obra de Florian Zeller faz com bastante eficiência.
Contando com ótimas atuações de Anthony Hopkins e Olivia Colman, o filme se propõe a entregar uma experiência muito pessoal e aflitiva ao espectador. Ao utilizar o ponto de vista do idoso Anthony (Hopkins, com uma presença em cena avassaladora), que sofre com problemas de velhice, todos os desdobramentos apresentados ao longo da narrativa são uma surpresa para os personagens em cena e para nós enquanto público. Zeller, que também é o autor da peça Le Père, que originou o filme, utiliza diversos recursos visuais para moldar um terreno um tanto incompreensível e, inclusive, para prever transformações sutis que fazem todo o sentido no desfecho da história.
Meu Pai fala sobre temas como velhice, paternidade e deveres familiares de uma forma tão sutil quanto firme, pois apresenta os momentos de cumplicidade e "presença" de Anthony em contraste com as passagens em que o protagonista se sente perdido e muito só. Ao mesclar tão bem estes momentos, o diretor aprofunda a experiência cinematográfica a ponto de poucos diálogos serem necessários. A percepção de que as coisas estão mudando mais rápido do que se parece é real e vai ganhando cada vez mais espaço quando observamos as mudanças de cores no apartamento em que Anthony mora, assim como as breves trocas de personagens e de objetos no local.
Anthony Hopkins e Olivia Colman entregam interpretações poderosas e cenas emocionantes entre pai e filha
Ao abordar tão bem este momento da vida em que os papéis de pai e filha se invertem e as responsabilidades também, o diretor dá bastante espaço para que a dupla Colman e Hopkins deem um show de interpretação, tal como o teatro possibilita tal abertura. E o mais interessante é que, mesmo com a disposição das cenas sempre remeter muito ao teatro, Zeller passeia com a câmera pelo apartamento, faz cortes secos e apresenta as nuances sem muito alarde (algo que, no teatro, seria preciso de um intervalo ou um abrir e fechar de cortinas). O resultado acaba por ser uma belíssima mistura de estilos e formatos que nunca anula um ou outro.
Ao mesmo tempo, o roteiro de Zeller e Christopher Hampton é refinado e não possui desvios, mesmo com as breves intenções de se deixar algumas informações por baixo dos panos durante algum tempo. A atenção do espectador é extremamente necessária para captar o impacto de cada particularidade que vai e volta no decorrer dos atos, enquanto a dupla de atores apresenta total domínio em cena (o que torna toda a experiência mais emocionante). Nos momentos em que Anne e Anthony mostram-se empáticos um com outro -- especialmente a filha --, é quando Meu Pai garante cenas poderosas que falam sobre reconhecimento e amor dentro de um período com muitas incertezas e dificuldades.
Em seus minutos finais, Meu Pai traz duras reflexões sobre o impacto psicológico que um idoso pode sentir ao ser deixado de lado, e isso só acontece de maneira tão pungente porque Zeller prioriza este olhar frágil desde o primeiro minuto. Que o cinema já apresentou este tipo de personagem ao longo das décadas, isso é um fato -- mas a perspectiva ser inteiramente a da pessoa afetada muda completamente o sentido da história. Em atuação digna de Oscar, Anthony Hopkins mostra mais uma vez seu talento nato ao mergulhar física e mentalmente na pele de um homem acometido pela velhice e vítima de um sistema frio disfarçado de companhia.