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    Sem Seu Sangue
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Sem Seu Sangue

    Corpo em transe

    por Bruno Carmelo

    O drama brasileiro se abre com uma narração sugerindo que a vida não possui lógica, nem se encaminha a um destino preestabelecido. A abertura ao acaso é fundamental para compreender o ritmo muito particular proposto por Alice Furtado em Sem Seu Sangue. Se fôssemos discutir a sinopse, falaríamos na jornada transcendental de uma garota afetada pelo estado de saúde do namorado hemofílico. No entanto, este caminho interessa muito menos à diretora do que as metáforas decorrentes dos temas da vida e da morte, da dor e do prazer.

    A prova do desapego com a linearidade narrativa se encontra no descaso em relação ao coprotagonista, Artur (Juan Paiva), garoto enxergado apenas pelos olhos de Silvia (Luiza Kosovski). É ela quem descobre a doença do jovem, descrevendo-a em seguida ao público. Do mesmo modo, é ela quem sofre as consequências da situação dele. Artur praticamente não possui voz, tampouco controla o seu destino - ele nem mesmo deixa traços após sua passagem pela escola. O rapaz se assemelha a uma figura imaginária, fantasmática, talvez inventado pela garota tímida como forma de vazão aos desejos reprimidos. Será inútil esperar por algum discurso sobre a representatividade negra naquela escola, ou sobre a classe social à qual pertencem os jovens amantes. Os personagens não são explorados pela comunidade em que se inserem, e sim por seu capital simbólico.

    Assim, o corpo de Sílvia passa a sofrer as consequências da dor. Ela tem problemas no estômago e ostenta uma apatia injustificável, enquanto encontra pelo caminho dezenas de indícios do contato ente o natural e o sobrenatural. A estudante lê um livro intitulado “Ilha Mágica”, encontra frases sobre “cadáveres andando à luz do dia” e descobre os mistérios da magia negra. Ao invés de transformar a narrativa e conduzi-la a um rumo preciso, estas sugestões apenas abrem um leque de possibilidades às quais Sem Seu Sangue pretende acenar. A história perambula entre um mar de alegorias sobre a natureza humana, analisando diversas formas de vida (a cadela dando à luz) e morte (Artur, a doença de Sílvia, a turista francesa). Furtado constrói uma espécie de alucinação na qual nenhum conflito soa inteiramente real. O projeto, ou pelo menos partes significativas dele, poderiam corresponder a um sonho ou pesadelo.

    A escolha pelo exercício de linguagem resulta no tom etéreo, mais sugestivo do que propriamente assertivo. Furtado trabalha com sobreposições, mudanças bruscas de cor e iluminação, trilha sonora pop-rock e eletrônica, gestos lânguidos dos personagens. Os atores são conduzidos à apatia, como se o roteiro preferisse reduzi-los à função de corpos. Mesmo assim, Luiza Kosovski e Juan Paiva teriam potencial para entregar momentos de intensidade, caso solicitados. Digão RibeiroLourenço MutarelliSílvia Buarque encarnam seus papéis sem qualquer forma de variação que possa perturbar a rígida linearidade do ritmo. E o que dizer de Nahuel Perez Biscayart, mais um personagem que interage unicamente com Sílvia, mas não com o meio ao redor, como um fantasma adicional nesta “ilha mágica”?

    A montagem articula uma estrutura curiosa: na primeira metade, a narrativa parece não desenvolver sua premissa (a doença, a paixão do casal). Na segunda parte, quando enfim opta investir em conflitos, vai muito mais longe do que deixava pressentir, abraçando os caminhos fantásticos com fervor. Das sugestões poéticas iniciais, com imagens da paisagem e narrações sussurradas, passamos ao sangue e vísceras. Uma multiplicidade de leituras seria possível a partir desta jornada atípica, até porque o roteiro demonstra mais prazer em se abrir às interpretações do que em concluir a trajetória dos personagens.

    Talvez o resultado soe excessivamente vago para um público médio, e desestruturado demais ao lado de tantos filmes mais coesos apresentados na Quinzena dos Realizadores, em Cannes. Em outras palavras, parece concebido menos como veículo de reflexão do que meio de expressão pessoal e hermética. Mesmo assim, apresenta uma diretora claramente ambiciosa, que busca traçar, desde o longa-metragem de estreia, uma via autoral sem concessões. Essa postura pode ser considerada louvável, e ainda necessária, diante dos ataques recentes ao cinema brasileiro enquanto forma de radicalidade.

    PS: É provável que já haja pesquisas nesse sentido, mas seria interessante algum pesquisador em estética da imagem investigar o uso que o cinema nacional tem feito das luzes e cores em neon. Elas têm representado a porta de entrada para passar do material ao transcendental, dialogando com Deus (Divino Amor), com os mortos (Sem Seu Sangue, Los Silencios), com a natureza (Boi Neon) e com uma forma de êxtase pessoal (Tinta Bruta). Talvez a artificialidade do neon sirva de escapismo à realidade amarga destes filmes, ou possivelmente o neon remeta a uma aparência de festa, de ludicidade infantil, de sonho. Muitos dos títulos citado acima poderiam ser descritos como filmes de fantasmas. Vale investigar o que nos tem atraído nestas escolhas nada anódinas de cor e imagem.

    Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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