A vida invisível das mulheres
por Sarah LyraEmbora parta de questões envolvendo principalmente Samia (Nisrin Erradi), Adam é um filme sobre duas mulheres tentando sobreviver ao machismo estrutural da sociedade marroquina, mas que ao mesmo tempo tem a potência de dialogar com os demais povos, culturas e países do mundo em que vivemos. Adam é tão brasileiro quanto A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, é marroquino. No fim das contas, são histórias de mulheres fazendo o melhor que podem diante das mais cruéis e injustas circunstâncias.
Se por um lado Samia parece não se deixar abalar pelos percalços enfrentados, Abla (Lubna Azabal) é o extremo oposto. Mesmo quando é bondosa, Abla sente a necessidade de manter o tom ríspido. Ao oferecer abrigo para uma mulher em situação de rua, precisa ressaltar em tom autoritário que a hóspede terá de sair na manhã seguinte, e que não se acostume com a nova moradia. A personagem é um misto de empatia e identificação com doses fortes de ressentimento. Embora direcione sua agressividade para Samia durante boa parte da projeção, o recado implícito no tratamento parece ser para si mesma.
“Não é azul, é cinza”, Abla se apressa em ressaltar, logo após a amiga elogiá-la pelo uso de uma cor diferente nas roupas. O azul, inclusive, se torna um simbolismo importante nos figurinos das duas personagens. No caso de Abla, como mencionado anteriormente, a cor é adotada para ilustrar a mudança da mulher, enquanto tenta se abrir para novas possibilidades, mesmo que negue em toda oportunidade recebida. Já para Samia, os tons celestiais têm uma função quase divina, traçando um paralelo entre as vestimentas da protagonista e de Virgem Maria — acentuado pelo fato de se tratar de uma mulher grávida de um menino e que vaga pelas ruas em busca de abrigo.
Dos tons pasteis suaves aos rosas e amarelos levementes saturados, as cores do filme passam a ditar gradualmente o estado de espírito das duas mulheres, não apenas nas vestimentas, como também na ambientação. Em um primeiro momento opacas e sem vida, as ruas da cidade, e até o ritmo das interações nos espaços públicos, se tornam muito mais vívidas e coloridas na segunda metade da trama, fruto da bela amizade desenvolvida entre as duas personagens. A diretora Maryam Touzani aposta nas nuances e explora as sutilezas de duas personagens muito diferentes em personalidade, mas com uma mesma bagagem em comum. E a forma como Abla se contorce com raiva antes de ceder aos movimentos de uma dança são o exemplo perfeito da complexa dinâmica estabelecida entre a dupla.
Em sua segunda metade, Adam acaba cedendo à tentação de incluir uma figura romântica para compor a “reabilitação” de Abla, que, após anos de rígida privação, finalmente se abre para a possibilidade de um novo amor. E para um filme com tanta personalidade em diversos momentos, principalmente no cuidado em construir a relação afetiva entre as duas mulheres e na estética dos enquadramentos, a obra por vezes se mostra apenas correta, sem tender fortemente para nenhum dos lados ou ousar em sua abordagem. Ainda assim, o saldo final é positivo e orgânico, e a trajetória e questionamentos de Abla e Samia certamente se confundem à de muitas outras mulheres.