Cinema é memória
por Barbara DemerovO cinema é uma via que transforma a realidade em arte, seja ela transmitida de forma positiva ou não. Mas o grande trunfo é quando, mesmo tendo como pano de fundo uma realidade dura e cruel, a visão artística de um realizador ou realizadora se sobressai. Este é o caso do documentário Carta a Theo, que exprime o que há de belo na difícil existência daqueles que são considerados refugiados.
Longe de seus países de origem e incapazes de sair da Grécia, as vítimas da guerra são algumas das personagens trabalhadas pela diretora francesa Elodie Lélu, que vai a Atenas não só para registrar momentos com aquelas pessoas como também para montar uma homenagem a Theo Angelopoulos, também diretor, que faleceu na cidade após ser atropelado por uma moto enquanto trabalha em seu novo longa. Angelopoulos (que não foi atendido por uma ambulância pois a mesma quebrou por falta de manutenção) estava filmando justamente sua visão sobre os refugiados e a crise na Grécia, mas o acidente impossibilitou a finalização do filme.
Mesmo após este acontecimento trágico, Lélu entendeu a ironia contida na história do diretor: ele havia sido vítima da crise que estava filmando. Sendo assim, Carta a Theo torna-se algo muito além do que a tentativa da cineasta registrar seu carinho pelo amigo. O documentário ultrapassa a homenagem íntima para se transformar no registro da crise dos refugiados através de trechos filmados por Angelopoulos, mas finalizados (e narrados) por Lélu.
A visão de um completa a do outro. Juntamente com a narração pessoal da diretora, há diversas passagens que vagam por diferentes situações: a espera de grupos de pessoas que necessitam de documentos para permanecer no país, a inocência de crianças brincando na neve enquanto os adultos esperam no frio e a atenção de pessoas de diferentes etnias nas aulas para fixar a língua grega enquanto contam suas histórias. E quando Lélu apresenta um filme do diretor falecido a um grupo de refugiados, a ligação que a diretora almeja mostrar se torna bem clara.
Com pouco mais de uma hora de duração, toda a sobriedade contida naquelas vidas é transmitida sem muita dificuldade, e a montagem "brinca" com o fato deles serem considerados esquecidos aos olhos da sociedade ao apagar lentamente suas silhuetas. Tudo isso é apresentado enquanto Lélu lê sua carta a Angelopoulos - e toda a conjuntura da morte do cineasta faz ainda mais sentido quando o documentário insere trechos de outros filmes dirigidos por ele de forma tão delicada quanto marcante. Carta a Theo é mais um necessário lembrete de que a vida humana não deve ser apagada e de que estamos mais conectados do que é aparente.
Filme visto na 24ª edição do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, em abril de 2019.