A equivalência do olhar
por Bruno CarmeloTalvez fosse inevitável que isso acontecesse, algum dia: depois de tantas sessões em que espectadores assistem aos filmes, chegou a vez de os filmes assistirem ao espectador. Em Retrato Chinês, o diretor Wang Xiaoshuai utiliza um procedimento tão simples quanto complexo: ele se aproxima de grupos de cidadãos chineses e os filma parados, em locais públicos ou diante de suas estações de trabalho, encarando diretamente a câmera - e o público, por extensão. Não há narração, legenda, nomes de personagens, nem mesmo um único diálogo inteligível. As pessoas apenas param e nos encaram, com suas roupas comuns, seus gestos habituais, no meio da rotina diária.
O gesto se assemelha ao da fotografia: estes indivíduos do campo e da cidade, operários e camponeses, pessoas idosas e crianças, posam como se fossem tirar uma foto - o retrato citado no título. Mas o retrato, no caso, é produzido em vídeo, e depende tanto do movimento quanto do tempo para atingir a sua expressividade. Os corpos param, mas atrás deles as máquinas operam a todo vapor, outros pescadores pescam seus peixes, os transeuntes passam. Ao contrário da fotografia, a vida não se congela por completo: o mecanismo possui vida própria e se movimenta sozinho, enquanto os protagonistas sem nome nos encaram.
Poderíamos descrever a empreitada como uma forma de performance, tão conceitual quanto política. O fato de estes indivíduos não estarem produzindo, perto de pessoas e máquinas a todo vapor, soa como uma afronta, uma ousadia. A pausa ressalta o furor das usinas, assim como o furor das usinas torna a imobilidade ainda mais longa. A extensão de cada cena desafia o espectador: até quando seremos olhados? Estes olhos buscam nossa empatia, identificação, ou nos provocam, nos impelem a agir? O que significa o fato de pararem apenas para nós (nenhum outro personagem percebe a presença da câmera) e se tornarem invisíveis na multidão?
Silenciosamente, Xiaoshuai discute o corpo humano enquanto máquina, desempenho e força de trabalho. Ele fala de um país em crescimento econômico, mas esvaziado em valores e empatia. O ponto de vista político é desenvolvido inteiramente através desta estrutura, em planos de conjunto belíssimos, muito bem iluminados e filmados, com impecável captação de som direto. Os humanos constituem o foco do nosso olhar, mas se encontram tão imóveis quanto as pilhas de terra ou as garras dos tratores. Em outras palavras, os corpos se fundem com o ambiente, tornam-se cenário. As pessoas não mais agem nas usinas: elas se tornam peças, ferramentas.
Cada cena-esquete parece contar uma história independente, descrevendo à perfeição aquele lugar e aquelas pessoas. Descobrimos muito mais sobre a China de hoje via contemplação do que compreenderíamos pela linguagem verbal das entrevistas e narrações. Além disso, os planos abertos e dilatados permitem que nosso olhar passeie, explore cada detalhe, se deleite com a magnitude das composições como quem observa uma pintura (outra forma de retrato sugerido pelo título). Os núcleos de imagem se assemelham a gigantescos tableaux vivants, criados in loco com pessoas reais ao invés de atores. O valor que André Bazin enxergava na liberdade do espectador diante do plano sequência se manifesta de modo análogo nos longos e riquíssimos planos fixos de Xiaoshuai, onde há tantas atividades acontecendo, e tantos elementos para ver ao mesmo tempo.
Este agenciamento constitui não apenas um risco narrativo imenso - se não fosse pela riqueza das imagens e dos cenários, o resultado poderia ser um tanto enfadonho - mas também uma crença formidável na capacidade de se comunicar pela estética. Retrato Chinês fornece um importante contraponto à crença de que o documentário serve para comprovar uma tese ou vender uma ideia, assim como contesta o cinema “de arte” de grandes festivais, mais interessado em formas ultra polidas de produções autorais do que em propostas conceituais e ousadas. Esta é uma forma de cinema importantíssima, por encontrar no passado (o maravilhamento das composições dos primórdios do cinema) uma forma criativa de representar o presente, e acenar ao futuro (a representação de uma China ultracontemporânea, massificada, exausta).
Filme visto na 24ª edição do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, em abril de 2019.