Imagens de sofrimento
por Bruno CarmeloPrimeiro, é importante ter consciência sobre a obra em questão: por mais que os críticos queiram debater a estética do filme, seu discurso, sua construção narrativa etc., para muitos espectadores religiosos, que constituem o público-alvo desta obra, o principal (único?) valor se encontrará no fato de louvar a Deus e recriar a história de Jesus Cristo de acordo com a Bíblia. O projeto é transparente neste aspecto, e nunca tenta se passar por mais do que uma pregação cristã. “Deus é o princípio e o fim, o primeiro e o último”, ressalta o narrador nas cenas iniciais. Para o diretor Rafa Lara, o cinema é transformado em veículo de pregação, destinado literalmente aos convertidos. Portanto, não se espantaria que o público cristão ficasse muito satisfeito com o resultado.
No entanto, cabe à crítica retirar o projeto de sua vocação panfletária e analisá-lo enquanto filme. Portanto, a análise a seguir adota outros critérios do que aqueles da eficiência do discurso. Convém notar, por exemplo, que Lara investe a fundo naquilo que se poderia chamar de “estética cristã” convencional, ou seja, um conjunto padrão de escolhas de imagem para ilustrar a superioridade cristã em relação a outros modos de pensamento. O diretor emprega sem moderação as câmeras lentas durante cenas de tortura, litros de sangue para reforçar a dor de Jesus, a cor clara das roupas do protagonista em contraste com as vestes negras de seus adversários, e a luz solar coroando a cabeça de Jesus como sinal de sua evidente divindade.
Psicologicamente, tamanho reforço das imagens de sofrimento poderia ser considerado sádico, porém condiz com a religião em que a punição e a culpa desempenham papéis essenciais. O filme acredita que, quanto maior o sofrimento, maior será a virtude do protagonista, razão pela qual investe com prazer nas mãos deslizando lentamente pela cruz coberta de sangue, a coroa de espinhos ferindo a pele, as pedras voando em direção a Maria Madalena (Gaby Espino). Ao invés de trabalhar a psicologia de Jesus e seus apóstolos, privilegia os aspectos espetaculares da trajetória bíblica, a saber, a morte e os milagres. Por isso, a narração seleciona os “melhores momentos” da trajetória de Jesus, pulando do milagre da multiplicação dos peixes para a transformação da água em vinho, de um exorcismo para uma ressurreição.
É curioso que uma ficção tente se passar por documento, ou mesmo prova de um fato, no entanto Jesus de Nazaré se esforça em reforçar aquilo que estima ser uma verdade absoluta. Para isso, Lara insere na narrativa uma espécie de padre/pastor, ou seja, um narrador em off que prega ao longo da história. Ao invés de simplesmente nos mostrar Jesus jejuando durante quarenta dias e quarenta noites no deserto, enquanto é tentado pelo diabo, o narrador descreve exatamente a cena que vemos com nossos olhos. Existe uma preocupação didática, uma vontade de tornar o ensinamento o mais claro possível, o que pressupõe um espectador incapaz de compreender sutilezas ou simples associações. O tom, portanto, é paternalista como convém à retórica religiosa, e um tanto enfadonho para qualquer espectador interessado na construção das imagens.
Os atores correspondem à intenção pedagógica ao criarem personagens unívocos e maniqueístas. As atuações são afetadas demais para o registro cinematográfico, como se Jesus (Julián Gil) precisasse sublinhar a todo instante que seu personagem é realmente muito bondoso, enquanto Herodes (Sergio Goyri) e Pôncio Pilatos (Sérgio Marone) precisassem mostrar que são de fato vilânicos a todo instante. A dublagem brasileira acrescenta uma camada de artificialidade ao conjunto. Trata-se de um uso simples e reincidente da linguagem cinematográfica, porém totalmente calculado – em nenhum momento ele parece ser um descuido da direção. O teor religioso é inclusive adequado aos tempos contemporâneos, com atores e atrizes belíssimos, mais parecidos com modelos fotográficos, além de figurinos e cenários assépticos, limpos e novos demais para personagens que peregrinam durante dias no deserto. A intenção é tornar estas figuras literalmente atraentes, idealizadas, desejáveis.
Por fim, seria incoerente exigir criatividade deste drama. Os constantes projetos sobre Jesus Cristo servem não a atualizar o discurso ou dialogar com obras precedentes, apenas a fornecer mais um lembrete, considerado necessário, sobre a bondade de Jesus. A função do filme é retórica: seu mérito se encontra no fato de existir, de sustentar uma marca, reforçar um discurso específico. O cinema, enquanto arte, é tão secundário neste caso que a construção das imagens importa pouco, enquanto reforça-se o poder da transmissão oral – no caso, a pregação, a narração e os diálogos ininterruptos. Jesus emite todas as frases de efeito esperadas dele, enquanto ostenta o mesmo sorriso benevolente do início ao fim. Existe algo decepcionante, ou talvez reconfortante (dependendo do seu ponto de vista), em encontrar exatamente a mesma história, com a mesma abordagem e o mesmo discurso, em múltiplas ocasiões no cinema.