O espaço da música independente
por Bruno CarmeloSurpresa: as primeiras cenas deste documentário não correspondem às tradicionais imagens dos músicos cantando, tampouco aos elogios de especialistas quanto à importância histórica do Grupo Rumo. O espectador se depara com uma animação em preto e branco a partir de uma filmagem documental, ou seja, assistimos à versão ficcionalizada dos depoimentos gravados. Em seguida, um deles é questionado sobre a relevância histórica da banda e responde: “Nenhuma”, sugerindo que a eventual importância só poderia ser medida com o tempo, e precisaria vir de pessoas externas. A porta de entrada ao Rumo diverge muito da habitual homenagem biográfica.
Melhor do que isso, o procedimento se desenvolve consideravelmente ao longo dos econômicos 77 minutos de duração. A lúdica animação em preto e branco vai ganhando cores, primeiro nos personagens, e depois no cenário, até assumir a sua vocação fotográfica com a filmagem em live-action. Deste modo, evita a uniformidade da captação, cria um ritmo dinâmico, imprevisível, e permite que a linguagem pop do Rumo se traduza na imagem destinada a representá-lo. Os diretores Flavio Frederico e Mariana Pamplona efetuam escolhas tão simples quanto funcionais para reciclar o formato engessado dos depoimentos associados a imagens de arquivo. Mesmo o material histórico possui um teor particular: a textura gasta da captação digital antiga condiz muito bem com a vocação marginal dos músicos.
Conforme a animação cede espaço ao live-action, o roteiro passa a tratar de temas mais amplos, menos pessoais, como o funcionamento do mercado fonográfico. Com estes procedimentos, os diretores corriam o risco de chamar atenção excessiva ao dispositivo, deixando os personagens em segundo plano. Felizmente, evitam este problema por adotarem uma linha coesa – a progressão linear do desenho à fotografia – e por empregarem a linguagem juvenil de modo a destacar a distância entre a estética dos anos 1980 e aquela do século XX. A estética acaba dizendo muito mais sobre o período histórico e social em que estavam inseridos do que um eventual letreiro ou narração.
Enquanto isso, Rumo descarta os dilemas pessoais, os casamentos e decepções, para se focar apenas na música. A abordagem reflexiva se concentra tanto no estilo e na produção do grupo quanto no cenário musical como um todo, incluindo importantes críticas à falta de espaço destinada às músicas regionais nas rádios. O filme reflete o bom trabalho de pesquisa e a aproximação habilidosa dos entrevistados, claramente confortáveis em conversar com os diretores sobre suas conquistas e seus fracassos. O fato de termos os músicos falando sobre si mesmos, refletindo sobre décadas passadas, possibilita o distanciamento necessário para se discutir o legado da empreitada.
Mesmo a utilização das canções se revela particularmente bem escolhida para refletir a evolução do grupo, a relação íntima com a cidade de São Paulo e a dificuldade de se encaixar num rótulo, seja ele o de MPB, rock, pop ou “música falada”. As canções resumindo a história do Rumo, ou brincando com o final dos concertos em público, encaixam-se perfeitamente com o discurso do filme, sem soarem como demonstrações acessórias. Em outras palavras, as canções são exploradas por seu valor narrativo, ao invés de se reduzirem a exemplos de uma produção musical.
Rumo se conclui como um projeto ao mesmo tempo maduro em sua abordagem temática e acessível em sua concepção imagética – uma combinação um tanto difícil de alcançar. Deste modo, permite discorrer sobre o paradoxo inerente à marginalidade artística, entre o compreensível desejo de alcançar um público amplo e a constatação inevitável de que toda subversão de linguagem está fadada a restringir sua comunicação.