O controle da dor
por Bruno CarmeloAntes de expor os abusos sexuais sofridos por centenas de ginastas norte-americanas ao longo de décadas, a diretora Erin Lee Carr dá um passo atrás para analisar a rotina dessas garotas. O que se esconde por trás dos sorrisos e dos gestos graciosos? A resposta fornecida pelo filme diz respeito ao sacrifício do esporte de alto nível: os treinamentos são exaustivos, o clima de competição com outras atletas é opressor, as dores de lesões e esforços repetidos tornam-se uma batalha diária para cada ginasta. Mesmo assim, as atletas demonstram paixão por fazerem “o que ninguém mais faz”, executando movimentos que desafiam a noção do possível. “É como voar”, explica uma delas sobre as acrobacias.
O melhor aspecto deste documentário-denúncia se encontra ironicamente em seu terço inicial, quando ainda não chega aos casos de estupro. É neste trecho que Carr apresenta sua melhor tese, no caso, a ideia de que os abusos às ginastas vêm muito antes da conduta inadequada do médico Larry Nassar: desde a infância, elas convivem com xingamentos dos técnicos, cobranças excepcionais quanto aos resultados, sem poder reclamar – “como um soldado”, compara uma ex-atleta. A agressão de Nassar a aproximadamente trezentas ginastas se deveria tanto à condescendência dos diretores e supervisores quanto à internalização das garotas da necessidade de suportar a dor, contanto que os resultados apareçam.
Afinal, em paralelo às “massagens” dentro da vagina que deixavam o médico com ereções, ele também efetuava procedimentos corretos, que ajudavam as atletas. O projeto se torna mais potente quando investiga a psicologia por trás dos abusos, a sensação de culpa das vítimas, a dificuldade em assumir os casos e enfrentar a opinião pública. Carr inclusive efetua uma conexão importante com o movimento MeToo, que viria a encorajar outras mulheres a relatarem os seus abusos, apesar da pressão de poderosas instituições para silenciar os casos. A todos os espectadores que ainda julgam as vítimas por suas atitudes (“Por que não relatou mais cedo?”, “Se ele fez tudo isso, não foi porque você consentiu?”), o documentário consegue traduzir a dificuldade de se assumir enquanto vítima, e depois de enfrentar o olhar dos outros e colocar a própria carreira em risco.
Apesar destas qualidades, o projeto assume um caráter um tanto descritivo a partir de seu terço inicial. No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica torna-se linear, verbal, baseado na combinação clássica de depoimentos e imagens de arquivo. A diretora demonstra evidente preocupação em resumir os principais passos da investigação, em ordem cronológica. Neste sentido, está muito mais preocupada com o trabalho de jornalismo investigativo do que com a construção cinematográfica – como atestam a fotografia bastante simples das entrevistas e a montagem acadêmica na colagem de fotos e depoimentos. Neste filme, a imagem serve sobretudo a atribuir verossimilhança aos relatos: depois de uma fala sobre um treinador severo, vemos uma foto do homem com expressão austera, depois da descrição de Nassar como um amigo sorridente, presenciamos uma imagem do médico sorrindo.
Deste modo, não há atritos, não existe conteúdo expressado apenas pela articulação das imagens, dos sons. A direção se torna extremamente dependente, para não dizer refém, das entrevistas: a linguagem cinematográfica se torna mero suporte para o discurso de defesa das garotas. O resultado é louvável pelo viés humanista, ainda que pobre enquanto construção artística. Este tem sido um fator recorrente nos últimos documentários produzidos pela HBO: assim como Deixando Neverland e A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício, No Coração do Ouro constitui uma produção polida, competente, cuja preocupação didática o aproxima mais da reportagem de alto nível do que de um cinema particularmente instigante.
Um exemplo deste aspecto se encontra na sequência de abertura, quando as frases mais potentes do documentário são adiantadas numa espécie de vinheta, como se quisesse impedir o espectador de trocar de canal. Esta tática de retenção do público é típica dos vídeos virais da Internet, e se mostra mais relevante à preocupação comercial do que à estética do filme em si. Além disso, a trilha sonora constante, imitando batimentos cardíacos nos instantes mais tensos, constitui outro facilitador ao público médio – isso sem falar nos fracos close-ups com a câmera giratória em torno das protagonistas, rumo ao final. Por um lado, é compreensível que a cineasta e os produtores busquem tornar o discurso acessível a indivíduos distantes desta realidade, como um sinal de alerta visando conscientizar o máximo de pessoas possível.
Por outro lado, estes recursos reduzem a ambição e o interesse do projeto como um todo. Se os depoimentos finais das vítimas são fortes e comoventes, o mérito recai às próprias ginastas e ao material de arquivo, e não ao uso um tanto acadêmico do mesmo – Carr basicamente deixa as imagens do tribunal desfilarem, cortando os excessos na montagem. Ela ainda se aproxima de um posicionamento perigoso ao passar da justiça à vingança, enaltecendo a juíza-heroína pela longa sentença contra Nassar e pela frase “Eu acabo de assinar a sua sentença de morte”.
Neste momento, a diretora sobrepõe sua militância à sua abordagem artística. Ela poderia transmitir o asco por Nassar e outras pessoas coniventes com os abusos via articulação de montagem ou metáforas com imagens de captação própria, por exemplo. Ao menos, o projeto se encerra com um discurso claro, progressista, relacionado ao empoderamento das vítimas e à solidariedade entre mulheres. É louvável que grandes empresas audiovisuais estimulem projetos sobre temas espinhosos do gênero.