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    Cine Marrocos
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Cine Marrocos

    A arte da projeção

    por Bruno Carmelo

    Ícone do meio cinematográfico dos anos 1950, o Cine Marrocos teve um fim triste, sendo desativado e abandonado. Ao contrário de tantos outros cinemas, não foi demolido para se converter em shopping center ou local de pregação religiosa. A carcaça permanece exposta no centro da cidade, com o letreiro erguido, as cadeiras depredadas na parte interna, alguns rolos de película jogados pelas escadas. Pelo descaso, serviu de lar para tantos moradores do MSTS (Movimento dos Sem Teto de SP), que convivem ao lado dos projetores e da tela, mas não têm acesso aos filmes. Estas pessoas nunca estiveram tão perto e tão longe da arte cinematográfica.

    Diante da curiosa relação limítrofe, o diretor Ricardo Calil decidiu convidar os moradores a participarem de uma oficina de artes cênicas, tendo como objetivo final a reencenação de trechos dos filmes exibidos em festivais da época - clássicos como A Grande IlusãoCrepúsculo dos Deuses e Júlio César. A intenção não seria transformá-los em atores profissionais, é claro, e sim trazer o cinema à vida dessas pessoas, de duas maneiras: na tela, como espectadores, e na vida, como agentes capazes de produzir e se reinventar. O cinema se torna, então, ferramenta de projeção, tanto no sentido mecânico quanto psicanalítico do termo. De modo inesperado, tantos imigrantes, pessoas doentes ou deixadas pelas famílias se veem na possibilidade simbólica de interpretarem reis, divas do cinema, damas resistindo ao charme do conquistador.

    O procedimento poderia se tornar cômico, ou mesmo ridículo, mas o diretor e os preparadores de elenco Ivo MüllerGeorgina Castro encaram a tarefa com seriedade. Os participantes da oficina percebem o esforço necessário, e se investem com nítido comprometimento. Eles falam em suas línguas natais (incluindo inglês e francês) e podem rir quando evocam suas histórias passadas, porém assim que as câmeras se ligam, transformam-se nos personagens indicados, esforçando-se ao máximo dentro de suas capacidades dramáticas. O resultado das reencenações interessa menos pelo mérito artístico - ainda que sejam, de fato, bastante competentes - do que pela capacidade de transformação dos indivíduos. A ocupação do Cine Marrocos torna-se artística, além de material e humana.

    Pode-se falar, portanto, em um gesto cidadão: vistos tantas vezes como bandidos ou vagabundos, os moradores têm a oportunidade de fornecer o seu lado da história, explicar exatamente o que os levou àquele espaço, e o que o edifício significa para eles. Além disso, sentem-se capazes de exercer tarefas que jamais acreditaram possíveis, sinal de empoderamento da classe marginalizada através da introdução à arte. Calil também se preocupa com as armadilhas em que poderia cair por ser um habitante de classe média trazendo um olhar externo à ocupação. Assim, permite que um dos personagens, antigo iluminador de teatro, teça críticas ao aspecto colonialista e paternalista do projeto. Em seguida, os comentários são levados em consideração, e incorporados à abordagem. Felizmente, percebemos que o diretor está fazendo cinema com os membros do MSTS, e não sobre eles - caso em que seriam restritos à posição passiva de objetos de estudo.

    Em virtude de um dispositivo tão cinematograficamente e socialmente complexo, é uma pena que Cine Marrocos não se desenvolva mais. Com apenas 76 minutos de duração, deixa de investigar aspectos importantes: como é a vida diária daquelas pessoas dentro do cinema? Que relação tinham com as artes dramáticas antes de ocuparem o espaço? Qual foi a primeira reação aos clássicos exibidos, e de que maneira se sentiram ao interpretarem figuras europeias e nobres, ao invés de personagens brasileiros com os quais pudessem se identificar mais facilmente? Alguns deles se recusaram a participar da oficina? Eles tinham total consciência de como suas imagens seriam apropriadas, montadas e exibidas no produto final? Embora afirmem ter aceito a proposta para “se distrair dos problemas”, como afirma um morador, tiraram algo a mais após o trabalho?

    Mais do que isso, o documentário foge à importante complexidade política daquela ocupação. O líder do grupo afirma detestar todos os políticos igualmente, mas logo depois admite ter pedido votos para Aécio Neves e Geraldo Alckmin nas últimas eleições. Os demais moradores pensam como ele? O que teria atraído este homem nas propostas dos candidatos tucanos? Quando o Cine Marrocos foi desocupado por forças policiais, reportagens da Rede Globo afirmaram ter encontrado esquemas de tráfico de drogas e armas dentro do local. Calil jamais encontrou isso durante suas visitas? A versão oficial é confiável, ou se trataria apenas da desculpa necessária à prefeitura para desalojá-los? O MSTS (não confundir com MTST) seria de fato uma organização criminosa, vendendo drogas e extorquindo habitantes?

    Este projeto coproduzido pela Globo News contrasta dois pontos de vista importantes - aquele dos moradores e o das reportagens da Rede Globo - sem efetuar qualquer investigação própria. Temos a tese e a antítese, mas ficamos sem a síntese indispensável ao resultado final. Calil deixa que o espectador tire as suas próprias conclusões, porém sem fornecer elementos necessários para tal. A importante questão é simplesmente suspensa, enquanto as câmeras filmam - de modo belíssimo, aliás - a saída dos moradores ao som de “Saudosa Maloca”. Cine Marrocos se abre a um universo de possibilidades representativas e sociais, mas cumpre apenas parcialmente sua proposta, e termina por se isentar de um posicionamento político na hora mais crucial, quando a montagem prefere inserir uma reencenação de Crepúsculo dos Deuses, símbolo máximo da ilusão e da alienação. Nesta hora, o filme precisaria agir mais como Billy Wilder, escancarando a falsa magia, do que Norma Desmond desfrutando de seu último close-up.

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