Brincadeira marginal
por Bruno CarmeloPai e filha estão parados diante de um cadáver. Ela tem uma faca na mão, ele afirma ter matado outro homem. Ela possui os olhos vidrados, já ele está vestido como uma mulher rica. A música alegre nos garante que tudo não passa de uma comédia, e mais do que isso: uma farsa, assumidamente artificial, sobre a marginalidade paulistana. Horácio se concentra num submundo povoado por prostitutas, cafetões, mafiosos e ladrões de todos os tipos. Ninguém é digno de confiança, nem mesmo dentro da família central, composta por pessoas atrapalhadas e desesperadas para enriquecer a qualquer preço.
A premissa se prestaria a uma bela comédia popular, com possíveis acenos à sensação de impunidade e corrupção generalizada. Não é difícil se identificar – para o bem ou para o mal – com tantos malandros tentando se dar bem a qualquer preço. O elenco é dos mais promissores: Zé Celso empresta sua persona camaleônica e andrógina ao gângster do título, Maria Luísa Mendonça interpreta mais uma vez a mulher histérica e potencialmente suicida, Eucir de Souza se transforma no manda-chuva de uma gangue local. Percebe-se a proposta de instaurar uma fábula amoral, sem vilões nem mocinhos, com personagens instáveis, exagerados, de caráter tão fluido quanto a sua sexualidade.
No entanto, algumas escolhas do roteiro diluem o potencial do filme. O principal deles diz respeito à inverossimilhança dos personagens: Horácio é um poderosíssimo traficante que não vemos traficar; a filha dele, Petula, parece desesperada para fugir do cativeiro, mas assim que é liberada, permanece no mesmo lugar; Milton (Marcelo Drummond) é um capanga cujas tramoias são ocultadas do público; Roberta (Glamour Garcia) fica presa em seu apartamento, sem conflitos, servindo apenas como objeto de desejo de Milton. Enquanto isso, Horácio é um homem gay e apaixonado, mas raramente passa à ação em seu desejo aparentemente incontrolável. De modo geral, estas pessoas não possuem objetivos, passando a maior parte das ações dentro de apartamentos, carros e garagens. A cidade de São Paulo, ao invés de personagem, resume-se à condição de cenário.
Pela limitação dos deslocamentos – os personagens giram em torno de si mesmos – transparece-se a sensação de um agenciamento teatral, brincalhão. É positivo que o projeto não se leve a sério, mas seus personagens tampouco soam reais, algo particularmente problemático numa narrativa que se limita a segui-los por todos os lados. A câmera ora busca uma estética marginal (os cortes brutos, o enquadramento meio caseiro nos rostos), ora se acomoda numa dinâmica mais convencional (as discussões entre pai e filha durante o café da manhã). Ressente-se a falta de uma linha imagética precisa, de uma opção firme seja pelo humor popular, seja pela subversão assumida da linguagem. A configuração apresentada pelo diretor Mathias Mangin fica presa entre a vontade de agradar ou perturbar, entre fornecer um cinema de conforto ou de arestas.
Mesmo assim, é positiva a ambição de explorar o cenário do centro de São Paulo e acenar aos diferentes tipos de indivíduos fora do sistema. A representação das mulheres, sejam elas cis ou trans, ainda passa pelo prisma do fetiche e da objetificação – algo atenuado pela vingança simbólica de Nádia e pela exposição não idealizada do corpo de Milton. No entanto, fica a sensação de oportunidade desperdiçada diante do potencial de Zé Celso e da entrega desmedida de Maria Luísa Mendonça, cujos corpos se prestariam tão bem à radicalidade que o tema pedia.