Ensaio sobre a lucidez
por Bruno CarmeloComo foi criado o mundo: por uma intervenção divina ou através do Big Bang? Para os cientistas, a resposta é clara. Diante de ambas as teorias, eles se questionam sobre aquela que fornece a resposta mais plausível. Uma entidade sobrenatural teria implementado o mundo espontaneamente, a partir do nada, ou mutações e transformações químicas e físicas (ambas passíveis de comprovação e simulações) teriam dado origem ao fenômeno que gerou o planeta? Adota-se portanto a tese do Big Bang, a que melhor explica a circunstância de acordo com o conhecimento disponível.
Esta reflexão sobre o raciocínio lógico-científico poderia ser aplicada a Little Joe, estranha fábula a respeito de nossas incertezas. Um grupo de cientistas cria uma nova espécie de planta em laboratório, com a particularidade de secretar substâncias que despertam um sentimento de felicidade. Em outras palavras, uma flor que torna seus donos alegres. “Vai ser um sucesso de vendas”, apostam. Até o momento em que suspeitam que a nova criação esteja causando algumas transformações nas pessoas que as cheiram. Os leves câmbios de humor e atitude poderiam ser explicados por outras teses: é comum que os garotos adolescentes se transformem devido aos hormônios, é normal que uma mulher depressiva demonstre comportamento diferente durante uma crise. Assim, na ausência de provas sobre o caráter nocivo de Little Joe, a tese mais plausível é aquela das mudanças naturais.
O filme se constrói sobre um convite à paranoia. Alice (Emily Beecham), a protagonista e criadora da planta, é a primeira a recusar a hipótese de danos colaterais. “Eu sei que não é verdade”, ela retruca, recorrendo ironicamente à fé ao invés dos testes clínicos. No entanto, devido às curiosas coincidências que se acumulam ao seu redor, passa a abraçar a suspeita de algum erro na manipulação genética. Ora, as pessoas ao redor estão cada vez mais certas de que Little Joe é inofensivo. Todos estão felizes. Mas não seria este um efeito colateral da nova criação? Eles não estariam cegos ao perigo? O roteiro toma a precaução de desenvolver diversos casos que podem ser explicados tanto por Little Joe quanto pela ciência e pela psicologia. O espectador se encontra ou diante de um momento de paz, ou então de uma ficção científica sobre um agente poderoso e perverso.
Partindo da premissa improvável, a diretora Jessica Hausner poderia criar algo um tanto ridículo, na verve de A Pequena Loja dos Horrores ou tantas ficções científicas sobre cobaias mortais. Felizmente, o filme é inteiramente construído sobre um impecável equilíbrio de tons. O ambiente do laboratório, com sua elegante estufa industrial, oferece múltiplas possibilidades estéticas que a cineasta aproveita muito bem. A ideia de controle e ordem é sugerida pelos planos simétricos, pelas curiosas cores pasteis dos muros e jalecos, impecavelmente limpos e dispostos nos enquadramentos. Por outro lado, uma constante trilha sonora de sopro sugere um elemento selvagem, como uma selva natural que ameaça os personagens. A ideia da revolta da natureza contra os humanos é inteiramente construída via luz, enquadramentos e cores, o que resulta num potente senso de ambientação.
Ao mesmo tempo, os atores entregam um desempenho desafetado ao limite do cômico, o que valoriza a estranheza e a possibilidade de que tudo não passe, afinal, de um mal-entendido. Existem elementos suficientes para crer na ilusão (afinal, os exames com Little Joe não demonstram qualquer tipo de alteração nociva) e também para crer na ideia de uma manipulação tão sofisticada que não gera provas aparentes (vide o comportamento de Chris, interpretado por Ben Whishaw). Ora, na ausência de provas, não há crime, certo? É curioso que este ensaio sobre a lucidez seja aplicado a cientistas céticos e pragmáticos. Quando Alice se torna a única a suspeitar da planta, diante da incredulidade geral, ela se transforma na pessoa louca entre os saudáveis. Mas e se todos estiverem loucos, e ela for a única sã? Se a loucura contamina a todos, ela não se transforma na nova norma social? E qual seria o problema, afinal, se as pessoas estão de fato mais felizes após o contato com a planta?
Little Joe trabalha com uma quantidade formidável de questionamentos importantes a partir de sua simples fábula botânica. Jessica Hausner discute manipulação genética e manipulação humana, a fé contra a ciência, a paranoia contra os fatos. Ela questiona nossa percepção da realidade em tempos de incerteza, de falsidade, de fake news e, acima de tudo, analisa o poder de sugestão do cinema. Se fossem retiradas as cores, a música agressiva, os elegantes deslizamentos da câmera e zooms perturbadores; se as atuações optassem pelo naturalismo, nossa percepção da planta seria diferente? O cinema não deixa de constituir, por si só, uma forma de manipulação, assim como a planta. Alice torna-se alter-ego de Hausner, ambas “mães” de criaturas que podem ser interpretadas como boas ou ruins, agradáveis ou nocivas, de acordo com os olhos de quem as vê.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.