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    Uma Mulher Alta
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Uma Mulher Alta

    O caos no silêncio

    por Sarah Lyra

    Depois de assistir a Uma Mulher Alta, é engraçado pensar como a altura é o mais sutil dos atributos da protagonista Iya (Viktoria Miroshnichenko). Ser moradora de um hospital militar habitado por veteranos da guerra, guardiã do filho da melhor amiga e dona de uma paralisia inquietante que se manifesta sem critério são alguns dos indícios dos profundos traumas psicológicos sofridos pela personagem. Além disso, a protagonista simboliza uma luta que não se restringe a dela ao se transformar no sintoma de uma sociedade devastada pelo cenário pós-leningrado. Iya, assim como muitos ao seu redor, parece executar sua rotina diária apenas como instinto de sobrevivência, e não porque vê algum propósito na vida. E a tragédia que acontece nos minutos iniciais é a prova da esperança de uma reviravolta que nunca virá.

    Quando Masha (Vasilisa Perelygina) chega repentinamente ao hospital, o diretor Kantemir Balagov nos mantém intrigado por colocar seus personagens na posição de reagir aos acontecimentos de forma completamente diferente do que é esperado. Como a mãe que recebe a notícia da morte do filho e decide sair para beber e dançar, não porque não se importa, mas por uma inabilidade em processar a dor. Masha, em seu desejo de procriar a qualquer custo, se torna um dos elementos mais assustadores e comoventes da trama, pois demonstra como a falta total de perspectiva afeta sua relação consigo e com as pessoas em seu entorno, a ponto de se tornar destrutiva e autosabotadora.

    Com um design de produção pautado em tons saturados de verde e vermelho, Uma Mulher Alta constrói uma tensão constante ao acompanhar a vida de pessoas que nada tem a perder. Um dos momentos mais reveladores sobre as consequências da guerra é aquele em que uma família se reencontra e imediatamente percebe o enorme sacrifício que precisará ser feito em seguida. Sem condições financeiras de ajudar o marido gravemente ferido, Stepan (Konstantin Balakirev), sua esposa chega à conclusão de que eutanásia é o caminho mais coerente para todos, principalmente para dar uma chance ao filho pequeno, tamanha é a dificuldade de colocar comida na mesa. E, momentos depois, quando a direção do hospital chega com brindes para agradecer o esforço coletivo realizado no local, a apatia dos pacientes e dos funcionários diante da situação fala mais do que o discurso proferido pela autoridade.

    O domínio de Balagov sobre os espaços do hospital e as relações estabelecidas a partir destes é a maior força do longa. Em sua leveza e confiança, o diretor constrói uma ambientação que, em si, comunica mais no silêncio, principalmente no que diz respeito às duas temíveis decisões tomadas pelo médico Nikolay (Andrey Bykov), em que ele sinaliza seu desconforto apenas no olhar e na linguagem corporal. Dito isso, é válido ressaltar a importância de cada ator para o conjunto, já que a dinâmica entre eles determina o peso dos acontecimentos. A brilhante cena envolvendo o almoço em uma mansão, já no ato final, não seria a mesma sem a competência do quarteto escalado.

    Note como até mesmo os dois homens, que quase não possuem falas, são essenciais para a crueza do diálogo entre as mulheres. E como é inteligente a abordagem do roteiro em subverter nossas expectativas ao mostrar que a mãe de Sasha (Igor Shirokov), na verdade, estava tentando proteger Masha. A intimidade entre as duas personagens, que são completamente estranhas uma à outra e estão se vendo pela primeira vez, vem exclusivamente a partir do entendimento do que é ser vítima de homens abusivos.

    Mais do que sobre um povo devastado, Uma Mulher Alta acompanha a luta ainda mais profunda do que é ser mulher em um cenário já caótico. Não é só porque se trata de uma trama nos anos 1940 que o machismo deve ser naturalizado, e Balagov entende como seu filme se relaciona com a demanda atual por representatividade. Se ainda hoje o caos, agora em outra forma, reina sobre os homens, imaginem no que isso se converte para as mulheres.

    Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.

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