Sociedade doentia
por Bruno CarmeloPor que as pessoas se matam? O questionamento é comum após um suicídio, partindo de uma argumentação puramente racional sobre o caráter desnecessário da morte precoce (“Mas ele ainda tinha tanta vida pela frente!”, “Mas ela podia dar a volta por cima” etc.) para refletir sobre algo que vai muito além da razão. É tentador encontrar um culpado único de modo a isentar um grupo social de responsabilidade, impedindo portanto a nossa identificação com um suicida: assim, Heath Ledger teria se matado porque enlouqueceu durante o processo de composição do Coringa, Vincent Van Gogh teria tirado a própria vida pelo fracasso da carreira. Ou seja, foram circunstâncias alheias à nossa realidade, portanto não temos nada a ver com isso. Seria mais incômodo sugerir que a sociedade cria estímulos à depressão e outras patologias, e que fenômenos contemporâneos como as redes sociais contribuem muito à sensação de vazio.
Este é um dos aspectos mais interessantes do documentário de Erin Lee Carr: partir de um caso em que aparentemente se tem uma criminosa perversa (a namorada que incentivou o namorado a cometer suicídio via mensagens de celular) apenas para apontar que a realidade possui muito mais nuances do que se imagina. A narrativa se abre com o pré-conceito mais evidente, apenas para desconstrui-lo em seguida: logo na primeira cena, trechos das conversas entre Michelle Carter e Conrad Roy aparecem na tela. Ele está dentro de seu carro, com o escapamento ligado, inalando o gás na intenção de se matar. Quando sai do carro, por medo de o plano funcionar, recebe a resposta dela pelo celular: “Volte para dentro!”. Deste modo, o rosto imperturbável da adolescente durante o julgamento é atribuído à frieza e à indiferença. Há indícios suficientes de que ela tenha cometido os atos para se tornar famosa no papel da namorada de luto, por se tratar de uma garota carente e com poucos amigos.
A narrativa segue a estrutura do julgamento de Michelle Carter: primeiro são apresentados os argumentos da promotoria, segundo os quais Conrad era um jovem frágil e Michelle se aproveitou da ingenuidade do garoto para manipulá-lo. Em seguida, quando se passa a voz à defesa, descobrimos uma versão muito distinta, através de fatos novos: Michelle se revela uma adolescente igualmente problemática, que flertava com o suicídio tanto quanto Conrad, e que era muitas vezes maltratada por ele. Percebendo o desespero do garoto, teria sugerido o suicídio como uma forma de libertá-lo da dor. Ambas as possibilidades soam plausíveis, possuindo o mérito de irem além da discussão moral: não resta dúvidas quanto ao caráter nocivo das ações da jovem (incentivar alguém a se matar é sempre errado), mas há um questionamento fundamental sobre o caráter criminoso deste gesto. Palavras podem ser consideradas uma arma de crime? Michelle seria uma homicida, mesmo sem ter participado concretamente da morte de Conrad? O que isso nos diz sobre a liberdade de expressão?
Além de construir uma exposição plena de reviravoltas sobre estes dois jovens muito particulares, o filme estabelece um retrato preocupante da sociedade do século XXI. A cineasta enxerga o caso dos namorados como um sintoma dos tempos em que a juventude se sente perdida, sem ídolos concretos nem referenciais familiares desejáveis (ambos testemunharam abusos entre os pais ou casos de negligência). Assim, tornam-se incapazes de distinguir o real da ficção – Michelle era obcecada por Glee e A Culpa É das Estrelas, que talvez tenham servido de inspiração para o plano de suicídio – e romantizam o escapismo espetacular através da própria morte. Os relacionamentos virtuais, especialmente aqueles mantidos por palavras escritas, se revelam mais propensos às fantasias e às projeções. Em última instância, os jovens amantes projetavam um no outro o que desejam para si mesmos, tentando adequar a realidade à ficção sedutora.
Eu Te Amo, Agora Morra expande este raciocínio para a ideia de que a opinião pública está cada vez menos interessada nos fatos e na complexidade das discussões, optando por decisões sumárias. Na ausência de um depoimento de Michelle, ou do confronto com um júri popular, Carr busca a opinião das pessoas nas ruas, que optam rapidamente pela condenação da garota considerada essencialmente má. O maniqueísmo dos argumentos é tão espantoso quanto representativo do nível de discussões políticas, éticas e morais da sociedade contemporânea, quando se busca inimigos contra os quais se opor ao invés de diferenças que possam nos enriquecer. Construímo-nos em oposição a algo, e este ódio fundamental ao adversário se torna motor de identidade. A simplificação do caso reflete inclusive o machismo estrutural e a noção distorcida sobre o papel do encarceramento, entre vingança e preparação para reinserir o criminoso à vida em sociedade.
Se existe um porém neste debate fascinante, ele se encontra nas imagens acadêmicas: Carr prossegue sua investigação moral através de depoimentos simples (os familiares de Conrad mergulhados numa luz sombria), uso banal de trilha sonora e a escolha pouco inspirada de imagens da natureza como pano de fundo para as múltiplas cenas de mensagens de texto desfilando pela tela. Talvez a intenção tenha sido reproduzir os papéis de parede das telas dos celulares, mas dentro de um filme inteiramente dedicado às trocas virtuais, o suporte visual mereceria uma construção mais refinada. Os letreiros de abertura, com uma névoa espessa e animações de jornais fazendo referência ao crime beiram a ficcionalização, e mesmo a romantização do suspense. Ora, não se pode atacar este mundo de ilusões através de ferramentas de linguagem igualmente ilusórias. Se houvesse um distanciamento crítico em relação a estas imagens, elas poderiam expor o caráter superficial do amor via WhatsApp, mas a diretora possui um respeito sepulcral por todos os envolvidos, recusando-se a efetuar qualquer julgamento por si própria.
Em termos discursivos, no entanto, o projeto se conclui da melhor maneira possível, fornecendo perguntas ao invés de respostas, e confrontando o espectador ao seu senso apressado de julgamento. “Eu não sou capaz de dizer quem é culpado ou inocente nesta história”, parece nos dizer a diretora, e talvez esses termos dicotômicos nem caibam num episódio como este. Do mesmo modo, o espectador não seria capaz de efetuar tal julgamento. A frutífera provocação do documentário nasce da exposição de farto material de debate apenas para insinuar, rumo ao fim, que não temos condição de tomar partido, e que nossas certezas podem desmoronar a cada fato apresentado. A imagem distante de Michelle Carter na delegacia, prestes a entrar na prisão, possui tantos sentidos quanto houver interpretações do espectador: ela pode ser uma jovem maquiavélica, uma garota perdida, uma menina enganada, uma adolescente inconsequente etc. O julgamento formal se conclui, mas o suicídio ou possível homicídio preserva seus mistérios aos olhos do espectador.