O julgamento de Michael Jackson
por Bruno CarmeloMichael Jackson era pedófilo? A questão surgiu em 1993, com as primeiras acusações de crianças contra o artista, e depois no julgamento de 2003, quando foi inocentado. Em 2019, a dúvida ressurge devido às acusações de Wade Robson e James Safechuck, dois adultos que afirmam ter sofrido abusos sexuais por parte do astro durante a infância, ao longo de vários anos. Os fãs ardorosos podem descartar esta argumentação, dizendo que “Michael jamais faria isso”, que se trata de duas pessoas movidas por ambição financeira e aspirações à fama instantânea. Ciente deste mecanismo de defesa, Deixando Neverland jamais se constrói como uma investigação neutra. O documentário propõe uma defesa unilateral de Robson e Safechuck contra Michael Jackson. Se este fosse um julgamento, o filme de quatro horas de duração poderia ser a primeira prova apresentada pela acusação.
Com a palavra, o advogado das vítimas. Dan Reed, o diretor, sabe que não pode provar exatamente os atos de pedofilia – não existem fotos ou vídeos das práticas em si – mas possui elementos de sobra para apresentar um caso bastante convincente. A duração extensa do material se justifica pela determinação jurídica de apresentar o máximo de detalhes possíveis que sustentem a versão dos protagonistas. Além das descrições explícitas de sexo envolvendo crianças, são apresentadas alianças de casamento dadas às crianças, cartas de amor trocadas entre Michael e os meninos, faxes com mensagens carinhosas, comprovação de que o cantor conversava horas ao telefone com os garotos, visitava a casa deles todos os dias, insistia para que dormissem na sua cama, tornava difícil para os pais visitarem seus filhos. Camareiras atestam ter visto Jackson nu com os meninos. Independentemente da prova da pedofilia, o projeto propõe demonstração sólida do comportamento equivocado e abusivo do adulto com crianças de sete a dez anos de idade.
Estas cenas são difíceis de assistir, por carregarem a crueza de quem sabe que a minúcia é necessária para se crer na palavra de Robson e Safechuck. Afinal, o cinema não serve exatamente como revelação da verdade, mas como ferramenta de verossimilhança. A ideia é que, no final, se acredite nas vítimas, ou ao menos se desconfie da pureza do ícone. Enquanto destruição de um símbolo intocável, Deixando Neverland é bastante eficaz, principalmente porque os protagonistas não fazem questão de demonizar Jackson. Eles descrevem o amor profundo que tiveram pelo cantor, e que julgam ter recebido em troca. Fala-se em paixão, em beijos de língua. Os garotos estariam sendo abusados, porém sem conhecer este conceito – eles se consideravam sortudos por despertar a atenção de um dos maiores nomes da música mundial. Por isso, nem os jovens, nem as famílias poderiam suspeitar de qualquer intenção nociva. “Porque ele fazia música boa, as pessoas achavam que ele era um homem bom”, explica Safechuck, numa excelente descrição do princípio da autoria nas artes.
A construção psicológica de Robson e Safechuck se mostra igualmente complexa. O filme parte da infância, quando eram crianças pouco populares, ambos dotados de sensibilidade artística, e os dois com problemas paternos evidentes. Jackson se converteu em figura protetora, assim como as famílias aproveitaram o mundo de luxos e presentes oferecidos pelo cantor a estes núcleos de classe média. Deslumbrados pela magia, mães, pais e irmãos não desconfiavam do que acontecia dentro do quarto do cantor, cujas portas eram trancadas quando os meninos dormiam lá dentro. “Mas por que não contou antes? Por que mentiu no passado, negando os abusos? Por que deixou o caso continuar durante todo o tempo, se não estava gostando?”. As habituais desconfianças lançadas para descredibilizar vítimas de abuso são analisadas, uma a uma, incluindo longas descrições da autoculpabilização engendrada por uma violência dessa espécie. O documentário expõe de maneira clara o peso que estes episódios trouxeram a Robson e Safechuck em suas vidas adultas, com as esposas, os filhos, o trabalho. Não se trata de um episódio pontual no passado, e sim de uma agressão capaz de deixar marcas durante toda a vida.
Diante de uma descrição tão complexa, pode-se lamentar a pobreza cinematográfica do projeto. Os depoimentos de Robson e Safechuck parecem ter sido gravados de uma só vez, num único dia, de modo que as quatro horas de duração são ocupadas com as mesmas imagens, em dois únicos enquadramentos para cada um, o que impede uma elaboração mais dinâmica. Além disso, a única solução de Reed para saltos temporais e transições de uma entrevista à outra são imagens aéreas obtidas através de drones. Existem tantas tomadas aéreas de Neverland ou das cidades onde moram as vítimas – às vezes em imagens repetidas, por falta de material – que o resultado beira o amadorismo. De qualquer modo, esta é uma construção bastante frágil em comparação com Spielberg e Jane Fonda em Cinco Atos, duas produções excelentes da HBO.
O problema mais grave se encontra na ausência de ponto de vista: os depoentes controlam totalmente o discurso, e o diretor se limita a fornecer um veículo para se expressarem. Não existe a busca por contradições, a pesquisa suplementar, a construção de metáforas imagéticas. O filme se resume à humildade de “abrir câmera” para Robson e Safechuck dizerem o que quiserem, sem interrupção, sem questionamento, sem fricções de qualquer espécie. Esta postura transparece a adesão total ao discurso dos protagonistas – o que é perfeitamente aceitável -, porém reduz o cinema a um instrumento de mídia ao invés de um veículo artístico. O vídeo e as fotos são editados com bom ritmo pelo montador Jules Cornell, porém deixam a impressão de um diretor invisível, soterrado pela força de seu tema. Para um projeto que se baseia numa disputa de narrativas, no poder da credibilidade e do ponto de vista, é surpreendente que Reed se coloque em posição tão passiva – o que alguns poderiam considerar, talvez, como empatia, humildade ou generosidade.
“Eu não estou convencido com as falas deles”, apontaram alguns críticos nos primeiros textos publicados. “Eu não sabia que ele era um verdadeiro predador sexual!”, revelaram outros, horrorizados. Estas reações são curiosas por discorrerem sobre a temática do filme, mas não sobre o modo como essas informações são veiculadas. O papel do cinema é convencer alguém? Mesmo diante de um caso polêmico como esse, podemos medir a eficiência de um filme por sua capacidade de persuasão? Por fazer pessoas amarem ou detestarem Michael Jackson? Talvez este seja apenas o efeito colateral do discurso, algo que não pode, nem deveria ser medido como mérito. O intuito do projeto parece ser o de criar um ruído, desconstruir idealizações – a do artista perfeito, do local mágico onde ele morava, da inocência das crianças, da idoneidade dos adultos. Ele constrói uma reasonable doubt, como diriam os americanos – uma “dúvida plausível” sobre a reputação do astro. Este foi o mesmo argumento jurídico utilizado para inocentá-lo, em 2003, e que retorna como mancha à sua história. Podemos ter uma dúvida plausível sobre a veracidade dos fatos, assim como podemos duvidar da inocência do cantor. Ao final, ambas as hipóteses soam plausíveis.
Este é o principal efeito de Deixando Neverland: o fato de deixar o espectador numa sensação de insegurança. Então quer dizer que nós, fãs, sempre adoramos um monstro? Compramos álbuns e gritamos a favor de um pedófilo? O filme pode despertar uma sensação de traição: assim como Robson e Safechuck tiveram sua confiança abusada, nós também teríamos sido traídos pela imagem benevolente que Michael Jackson e sua equipe venderam. Admitir a crença na pedofilia implica, para os fãs, admitir o próprio erro, a conivência com os atos, a cumplicidade com uma pessoa detestável. Por isso, é compreensível que muitos espectadores repudiem automaticamente o documentário: através do julgamento de Michael Jackson, de Wade Robson, de James Safechuck e das famílias deles, é o espectador que está sendo julgado, intimado a tomar uma posição ou a rever seu posicionamento - e, talvez, admitir o seu próprio fracasso.