Imagem sobre palavra
por Bruno CarmeloNo início, este projeto envereda por um caminho tão instigante quanto arriscado: retratar, através da linguagem cinematográfica, o prazer da palavra escrita. Como em toda transposição de uma arte à outra, surgem obstáculos e limitações, que parecem constituir o real interesse das diretoras Sofia Bohdanowicz e Deragh Campbell. Analisando cartas pessoais da poetisa Zofia Bohdanowiczowa, a dupla emprega recursos dos mais interessantes, incluindo sobreposição de imagens, retroprojetores, leitura dos personagens e mesmo uma curiosa legenda silenciosa, surgindo em tela sem o acompanhamento de qualquer som.
A nostalgia da pesquisadora Audrey (a codiretora Deragh Campbell) deve dialogar diretamente com os apaixonados pela literatura impressa. O filme se esforça para reproduzir a textura do papel escrito, o som dos dedos percorrendo as folhas e do papel ao se dobrar, e mesmo a textura das cartas e a forma da escritura à mão. Ironicamente, a paixão pelas ferramentas analógicas é transmitida através da textura digital nítida, sem asperezas. Talvez o contraste seja proposital, explicitando o abismo entre a vida tediosa de Audrey (em seus quartos de hotel brancos e beges, tendo contato com poucas pessoas, efetuando um trabalho que interessa a poucos) e as palavras plenas de encantamento e sedução empregues pela bisavó a seu correspondente.
O curioso empreendimento é prejudicado por certas escolhas da direção. Apesar do início semidocumental, MS Slavic 7 (nome dado às cartas da poetisa no catálogo de Harvard) apresenta escolhas cada vez mais artificiais, a começar pelos enquadramentos fixos e posados, dentro dos quais a protagonista busca fornecer uma palestra sobre literatura sentada à mesa do bar, com uma cerveja na mão; ou o encontro com uma familiar, Ania (Elizabeth Rucker), sempre com as atrizes dispostas exatamente no centro do enquadramento. O experimentalismo da representação literária é sobreposto a uma narrativa fictícia engessada, tão teatral que beira o amadorismo.
As atuações contribuem muito para a sensação de uma obra hermética e perdida em suas decisões. Em meio a situações banais (acordar, fazer café, pedir documentos na biblioteca), Audrey expressa opiniões de modo etéreo, concatenando ideias soltas sem terminar frases ou concluir pensamentos. Os fragmentos de diálogos são entrecortados por longos suspiros ou pausas em busca da palavra correta, o que torna o resultado ainda mais vagaroso, e o tom, mais lúgubre. É possível que, em busca do realismo – a entonação hesitada, incerta – a atriz tenha exagerado tanto nos cacoetes que termine por criar um ritmo maneirista, e distante da leitura fluida de uma carta pessoal.
Por fim, o espectador saberá pouco sobre a escritora separada de seu interesse amoroso, ou mesmo sobre as qualidades que fizeram de Bohdanowiczowa uma artista de renome. MS Slavic 7 se concentra na busca, no processo de pesquisa, na inquisição sobre um termo ou outro (vide a longa cena sobre o significado da palavra “menta” em uma frase), ao invés do contexto em que esta carta se insere. Audrey tampouco se transforma numa personagem tridimensional. Exceto por uma curta cena em que se encontra na cama, nua ao lado de um homem, esta mulher não manifesta desejos ou vontades particulares.
O filme se mostra plenamente retórico, valorizando a iniciativa em detrimento da realização. Pelo menos, ele se mostra consciente desta vontade simples. Bohdanowicz e Campbell terminam por oferecer uma obra pequena em duração (64 minutos), em personagens (apenas quatro) e em alcance. Sua alusão esparsa ao prazer das palavras – o que também inclui as letras de música – se transforma em seu trunfo e sua limitação. Trata-se de uma iniciativa louvável, cujo potencial jamais é explorado a fundo.
Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.