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    Breve História do Planeta Verde
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Breve História do Planeta Verde

    Somos todos alienígenas

    por Bruno Carmelo

    Uma mulher transexual dorme em sua cama. Ela usa um tapa-olho com ilustração do E.T., o extraterrestre de Spielberg. Assim, os olhos de Tania (Romina Escobar) são substituídos comicamente pelos olhos da criatura. Um movimento lateral da câmera passeia pelo corpo deitado, e em seguida passeia por mais dois corpos, em apartamentos distintos: o de Pedro (Luis Soda), maquiador gay, e o de Daniela (Paula Grinszpan), mulher cisgênero e heterossexual. Os corpos são indistintos, dormindo da mesma maneira, se levantando e indo ao banheiro da mesma maneira.

    A equivalência entre corpos e identidades resume a abordagem de Breve Historia del Planeta Verde, filme que retira dos grupos fetichizados a sua aura espetacular. O corpo da mulher trans não é explorado por sua genitalidade, sua maquiagem, pelos olhares alheios. O corpo gay não se presta a qualquer tipo de idealização e promiscuidade, do mesmo modo que a mulher cis e hétero não se sente obrigada a se embelezar para os homens. O principal laço de afeto perene no filme ocorre entre os três amigos, que acolhem com carinho um extraterrestre roxo encontrado na casa da avó de Tania.

    O diretor Santiago Loza confere ao alienígena um tratamento muito especial. Ninguém fica particularmente chocado com a descoberta do ser estranho, de grandes olhos pretos e textura gelatinosa. Uma amiga reage à descoberta do E.T. com um simples “Legal, não sabia que eles existiam de fato”. Tania, Daniela e Pedro poderiam ter encontrado um cachorrinho abandonado, ou um bebê - o tratamento seria o mesmo. Aliás, quando descobrem uma tartaruga, o bicho é recebido com idêntica naturalidade. O filme imagina uma convivência harmônica entre os seres, sem categorizações nem hierarquias. Quando alguém precisa de cuidado, esta pessoa é ajudado.

    Isso não implica um bom-mocismo ingênuo, felizmente. O preconceito contra Tania está bem retratado, assim como o desprezo de outra parcela da sociedade à aparência de Daniela e à homossexualidade de Pedro. Mas este jamais é o foco da trama, que sabe muito bem alterar entre o natural e o sobrenatural, o individual e o coletivo. O discreto humor não é extraído às custas dos personagens, e sim de pequenos elementos de linguagem, como a curiosidade de ver um casaco amarelo-ouro no meio de uma floresta de elementos verdes, a dificuldade de arrastar uma mala de viagem entre os galhos e árvores ou ainda a necessidade de manter o alienígena constantemente imerso em gelo.

    Nas mãos de outros diretores, a premissa “mulher trans faz viagem com um alien” renderia uma comédia trash. John Waters poderia fazer algo neste sentido, ou quem sabe Almodóvar. Loza prefere a veia melancólica, capaz de perceber o absurdo da narrativa, mas ainda muito respeitosa em relação a todos os envolvidos. As imagens são belíssimas, num scope bem trabalhado em movimentos fluidas, deslizando entre cômodos e rostos com uma segurança ímpar. O diretor encontra o raro equilíbrio entre a leveza e a elegância, sem chamar atenção demais a seu próprio aparato técnico: a linguagem cinematográfica está perfeitamente adequada às necessidades da trama.

    O extraterrestre, que poderia despertar atenção pelo uso de efeitos visuais, é filmado com discrição, ora distanciado, ora em pequenos planos de detalhe. O corpo dele tampouco se torna objeto de fetiche. Vale dizer que a possível equivalência entre LGBT e alienígena parecia destinada ao fracasso, ou ao preconceito velado. Mas os protagonistas não são resumidos ao seu gênero e sua sexualidade, do mesmo modo que a criatura não é vista por sua estranheza. De certa maneira, todos pertencem àquele cenário, ninguém se destaca mais do que o outro. Existe uma equivalência de direitos, de olhares, de corpos, obtida com inesperada simplicidade.

    Através do enigmático final, Loza contribui a abrir os sentidos da obra, ao invés de explicá-la. Em sua pequeneza, o filme se assemelha aos melhores filmes cult de décadas atrás, que representavam a união entre marginais e a banalidade do cotidiano com o conhecimento de quem transitou por estes círculos de verdade. Não seria espantoso se Breve Historia del Planeta Verde encontrasse um público cativo dentro do nicho a que se destina, e fosse lembrado num futuro próximo tanto por suas belezas quanto pela visão singular e empática da natureza humana.

    Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, de fevereiro de 2019.

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