Biografia às avessas, de uma cantora e de seu país
por Renato FurtadoCom o corpo inerte largado no meio-fio, uma mulher pede silencioso socorro aos transeuntes, que a ignoram de pronto: é apenas mais uma pessoa jogada ao concreto das calçadas do Rio de Janeiro, rodeada por um cacho de bananas quase apodrecidas; é cotidiano na caótica Cidade Maravilhosa. Onde é que será que está o brasileiro cordial, receptivo, amistoso, simpático e afetivo descrito nas mídias e nas propagandas e imerso em nosso próprio imaginário coletivo? Esta figura, esta criatura mitológica — e, sobretudo, a ideia de nação que foi formada ao seu redor, o projeto de país centrado nesta invenção — é o principal alvo dos pontiagudos dardos do corajoso e experimental Tragam-me a Cabeça de Carmen M.
Acompanhado pela protagonista do longa na direção (a atriz portuguesa Catarina Wallenstein), o cineasta carioca Felipe Bragança retoma o seu interesse na desconstrução das fábulas, anteriormente evidenciado no seu Não Devore Meu Coração. Ao passo em que no drama de fundo romântico, mais palatável de um ponto de vista da audiência, o realizador debruçou-se sobre a Guerra do Paraguai — estudando suas consequências históricas e a conturbada relação estabelecida entre o Brasil e seu vizinho guarani —, agora Bragança permanece exclusivamente em solo pátrio, uma missão muito mais complicada, tanto pelas escolhas narrativas desta película, ocasionalmente herméticas, quanto pelo contexto que engloba o projeto.
Rodado em meados de 2018, Tragam-me a Cabeça de Carmen M. é, ao mesmo tempo, atualíssimo e imediatamente anacrônico. Em parte porque disseca as complexidades intrínsecas da brasilidade, este conceito profundamente abalado em decorrência da presente crise identitária na qual o país está mergulhado — se não somos aqueles quem sempre acreditamos ser, então quem é que nós somos? —; e em parte porque foi filmado antes do resultado das eleições de outubro passado, que concretizaram a escalada da onda conservadora em nosso país, encabeçada pelo movimento de extrema-direita do governo de situação do presidente Jair Bolsonaro.
Nesta produção arriscada — quase suicida por tentar examinar a tormenta brasileira tendo nascido dentro de seu fluxo temporal, ou seja, sem o "conforto" do distanciamento histórico —, Bragança e Wallenstein disparam inúmeras questões, muito mais do que podem abraçar, mas eventualmente retornam àquela que é sua grande investigação: compreender como o caráter moderado do brasileiro era apenas uma invenção, uma máscara que escondia uma violência inata e adormecida que hoje polariza ao máximo o país. Adotando uma postura de pesquisa quase acadêmica, a dupla retorna às origens do delírio tropical, destrinchando-o o falido projeto de Brasil a partir da figura mais “brasileira” de todas: Carmen Miranda.
Ensaio de uma cinebiografia às avessas da celebrada cantora portuguesa radicada no Brasil desde seu nascimento — o filme dentro do filme é comandado pela misteriosa personagem de Helena Ignêz, responsável por fazer a ponte entre este longa e a tradição do cinema experimental e marginal brasileiro, invocando o diretor "udigrudi" Rogério Sganzerla —, Tragam-me a Cabeça de Carmen M. emprega uma estrutura tradicional de conflito dramático como forma de manter seus pés no chão frente às ousadas experimentações e argumentações que deseja sustentar. Por isso, em sua superfície, este é um drama sobre a dura jornada enfrentada por uma atriz para conseguir construir uma personagem complexa.
Na pele de Ana, Wallenstein faz de tudo para se aproximar da finíssima voz e do inconfundível gestual de Carmen Miranda. Tentativa falha após tentativa falha, no entanto, a atriz embarca em uma quieta espiral de desespero, particularmente por jamais satisfazer os desígnios de sua exigente e anônima diretora. Vagando pelas ruas da Lapa, na região central do Rio de Janeiro — coração simbólico de um Brasil utópico fundado sobre o samba e a festa e locação perfeita para esta experimental empreitada —, Ana erra e é errante: absolutamente nada funciona e Carmen Miranda parece fugir cada vez mais de seu controle a cada passo que a atriz portuguesa dá em frente para interpretar sua conterrânea.
Frustrante e incômoda, é esta impossibilidade que Ana encontra em retratar a "biografada" que comprova a hipótese levantada pelos dois diretores nesta produção: Miranda, vista como diva e exportação brasileira para Hollywood, opera aqui como o símbolo de um projeto de país impossível e artificial porque utópico. E e há algo que vem sendo provado desde as manifestações de junho de 2013 é que a ideia de que nosso país é um caldeirão bem-sucedido de influências diversas, um paraíso sincrético, é a maior das falácias. Assim, através de uma infinidade de texturas e imagens, desde registros de arquivo aos suportes textuais, que Tragam-me a Cabeça de Carmen M. aponta que o momento atual é de escombros e ruínas.
O Museu Nacional em chamas, destruído por um incêndio no dia 2 de setembro de 2018, é inteligentemente inserido na trama como forma de escancarar ainda mais a desconexão entre o mundo das ideias e tudo aquilo que poderia, de fato, definir o Brasil, agora perdido nas cinzas. "O Brasil é o país do esquecimento, do medo, da bagunça", diz Ana, a certa altura da projeção, em mais uma das muitas sentenças marcantes do roteiro coescrito por Bragança e Wallenstein. Mas esse discurso ferrenho, de palavras fortes e signos ambíguos, não seria sustentável, aliás, se outra atriz além da codiretora tivesse assumido o protagonismo deste drama efervescente.
Atriz e cantora de potência infindável, formada no canto lírico, tendo uma longa experiência tanto com o fado, quanto com a ópera, Wallenstein é simplesmente formidável durante toda a trama; às vezes, Tragam-me a Cabeça de Carmen M. chega a soar apenas como uma pura exibição do talento de sua estrela, tamanho o comando exercido pela portuguesa. No entanto, por ser também autora deste longa, Wallenstein preenche a tela e rege a orquestra atrás e à frente das câmeras, ressoando perfeitamente em sua performance destemida e total a audaz proposta da narrativa; um triunfo que fica ainda mais evidente em sua violenta interpretação de "Sonho Juvenil", de Jovelina Peróla Negra, um dos pontos altos do filme.
Por abarcar muitos temas espinhosos de uma só vez, o filme acaba deixando algumas pontas teóricas soltas para trás, escorregando ao não aprofundar o suficiente a questão da desconstrução do artificial ideal feminino imposto sobre a diva Carmen Miranda, que necessariamente impacta todas as atrizes do longa, sejam elas cis ou trans. Mas isso, por si só, não atravanca o resultado final, uma vez que Bragança e Wallenstein estão muito mais interessados em discutir possibilidades de projetos para um país que busca sua reconstrução após um choque de identidades que ainda repercutirá por muitos anos — "Teu país anda mal, João", diz Ana para o namorado brasileiro.
Sabiamente, o feroz Tragam-me a Cabeça de Carmen M. não cai naquele que poderia ser seu mais fatal equívoco: o de oferecer respostas para as intrincadas problemáticas levantadas. E se é preciso recomeçar de algum lugar, o filme propõe a subversão das subversões ao encerrar-se em uma irônica, bagunçada e apoteótica reinterpretação de "Recenseamento", um dos mais famosos sambas de Carmen Miranda. Tendo desconstruído uma criatura mitológica, celebrando de fato o brilho da influente cantora portuguesa, Bragança e Wallenstein olham para frente com um tom de esperança, para além da impossível proposta sincrética que por tantos anos impactou o Brasil, esse lugar de contrastes ainda não pacificados.
Filme visto na 22ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2019.