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    Empate
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Empate

    Empatar significa resistir e lutar para vencer

    por Renato Furtado

    Resistir, lutar, nunca desistir e, no fim das contas, triunfar, talvez. Nenhuma destas ações chama à lembrança o verbo “empatar” quando se leva em consideração a língua portuguesa oficial, vernacular, dos dicionários, jornais e documentos, entre outros meios. Mas um idioma é uma entidade viva, é um fenômeno que se produz e cujas palavras e sonoridades são alteradas por aqueles que as vivem, distantes da frieza das letras. E em uma nação de dimensão continental como o Brasil, para empregar o clichê mais do que nunca necessário e verdadeiro, o documentário Empate prova que seu verbo-titular possui uma variante muito específica que não significa “ter os pontos iguais aos do adversário” — muito pelo contrário, aliás.

    Resgatando a memória do ambientalista Chico Mendes, assassinado há 30 anos por lutar pelos direitos à terra dos seringueiros em Xapuri, cidade do interior do Acre, a não-ficção de Sérgio de Carvalho parte do passado e de um vasto material de arquivo para estruturar o presente, em um esforço histórico que não só funciona como um registro dos ideais de preservação ecológica para a posteridade, mas que também opera como uma plataforma de expressão para toda uma marginalizada e periférica classe de brasileiros: a dos trabalhadores rurais do Norte do país, protagonistas dos “empates”, uma forma de resistência idealizada por Mendes contra os avanços dos fazendeiros e da indústria do agronegócio que consiste em formar cordões humanos ao redor das áreas florestais que os seringueiros desejam proteger.

    Através de closes afetivos, que observam com atenção todas as marcas impostas pelo tempo nos rostos de seus personagens, de Carvalho apresenta seus narradores, antigos companheiros de Mendes que seguem batalhando para manter os territórios nos quais vivem há anos e que continuam a ser cobiçados por agropecuaristas, interessados em expandir seus rebanhos de bois e vacas. No entanto, para que uma ocupação da terra prevaleça sobre a outra, é preciso não só desmatar a Floresta Amazônica, como também matar a oposição. Remetendo, assim, à tradição documental fundada por Eduardo Coutinho, exemplificada em obras como Cabra Marcado para Morrer e Peões, Empate estuda um dos mais letais embates do cenário brasileiro pela perspectiva daqueles que o vivenciam de dentro.

    O recente recrudescimento da brutalidade ambiental, que vem elevando a violência nos campos e escalando a situação ao nível da época em que Mendes foi executado a tiros de escopeta, é retratado por meio de uma linguagem visual bastante sofisticada, que combina planos tradicionais com planos aéreos, de drones, para concretizar em imagens as dualidades da questão dos conflitos de terra — nomeadamente a vida e a morte da floresta. Se de um lado da estrada temos a exuberância verde da mata, do outro, pastos enormes marcados por árvores derrubadas assemelham-se a desertos. Apoiado no eterno contraste entre a beleza e o horror, frequentemente “vizinhos de porta”, o documentário expõe o seu paraíso, mas também a sua antítese apocalíptica.

    Nesse ponto, Empate corajosamente não esconde sua natureza parcial, e jamais nega que toma para si a missão de transmitir as ideias de Chico Mendes e, principalmente, de seus companheiros de luta que seguem vivos hoje em dia, elevando-os à categoria de heróis. Contudo, enquanto lança uma muito atrasada luz sobre estes brasileiros que sempre viveram nas sombras — seja à sombra de Mendes, seja na sombra produzida pela subrepresentação midiática —, a não-ficção perde uma chance de ouro de complexificar sua profundidade ao não mergulhar e apenas tangenciar o universo contrário, aquele povoado pelos vaqueiros e empregados dos grandes fazendeiros locais, em um episódio curto de sua

    narrativa, intitulado “Fazedores de Deserto”.

    É evidente que não dar voz ou até mesmo rostos aos caubóis é uma escolha deliberada, mas somente vilanizar os empregados dos agropecuaristas sem nunca adentrar em suas humanidades soa muito simples; de Carvalho apresenta os antagonistas, mas não os personaliza, transformando-os em inimigos muito fáceis. O horror provocado pela indústria do desmatamento é óbvio e suas consequências são terríveis, cada vez mais distópicas, mas virar a câmera para este grupo e apenas apontar o ridículo da estética boiadeira ou o fascínio exercido pelo imaginário agropecuário e dos rodeios na juventude não é o suficiente. O lado que peca, que erra e que destrói já está posto, mas quem são estes peões do jogo do agronegócio e por que fazem o que fazem? Por que eles são o que são?

    Esgotar todos os meandros que fundamentam a problemática central de Empate é uma tarefa impossível, particularmente para uma trama de apenas 1h30 de duração. Entretanto, a partir do momento em que o realizador desvia a condução narrativa para minimamente dar conta da história dos caubóis acrianos, automaticamente também anuncia um aprofundamento de conteúdo que não se realiza. De qualquer modo, é igualmente preciso ressaltar que o maniqueísmo ocasional não fere em momento algum os triunfos deste documentário realizado no fluxo temporal de um momento política e ideologicamente conturbado no Brasil, produzido de maneira periférica — o que garante um olhar não-estereotípico sobre os povos rurais do Acre — e dirigido com a urgência que sua temática demanda.

    Sem pretender oferecer respostas para algumas das mais intrincadas perguntas que marcam o contexto ambiental de nosso país — e também do mundo —, o longa traz o resgate necessário de um passado que cada dia mais se faz presente, infelizmente. E se há uma dicotomia que coroa, acima de tudo, o esforço contrastante desta narrativa, ela não pode ser outra senão aquela que separa a primeira da última imagem deste filme: uma floresta em chamas, totalmente destruída, versus um grupo de trabalhadores e habitantes da floresta, unidos, caminhando juntos estrada abaixo, prontos para o próximo significado da palavra "empate", seja ele qual for. Empate é, enfim, um documentário essencial para hoje e para os tempos que virão, que prova que os homens morrem, mas as ideias não. Tanto para o bem, quanto para o mal.

    Filme visto na 22ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2019.

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