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    Öndög
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Öndög

    Um cadáver no horizonte

    por Bruno Carmelo

    Que maneira impressionante de descobrir um cadáver. Na cena inicial deste drama, duas pessoas andam de jipe por uma planície deserta, no meio da noite, buscando animais para caçar. Devido ao olhar subjetivo, não vemos seus rostos, mas escutamos as conversas entre os amigos, enquanto os animais cruzam a imagem, iluminados pelos faróis do veículo. Após alguns minutos, eles avistam algo diferente: o corpo inerte de uma mulher, deixado no meio sobre a terra, como um dos bichos abatidos. Os caçadores fogem do lugar, apavorados, arrastando com eles o olhar do espectador. Mas não há problema: no dia seguinte, o cadáver continua lá. Durante grande parte do filme, a mesma planície abriga o corpo da mulher anônima.

    O diretor Wang Quan’an encontra recursos curiosos para filmar os espaços e as pessoas. Em grandes planos abertos e frontais, vemos a linha do horizonte atravessar a imagem, ocupando o terço inferior do enquadramento. As pessoas, distantes, não têm traços do rosto perceptíveis, mas suas vozes compõem as personalidades e o absurdo da situação. Seria importante dizer que Öndög constitui uma tragicomédia, cujos personagens principais são um adolescente, encarregado de cuidar do corpo até voltarem os oficiais, e a única mulher habitando um raio de 100Km do local do crime. Inevitavelmente, eles se aproximam.

    O filme obtém resultados bastante expressivos a partir de um simples conceito inicial. A imagem da planície se repete inúmeras vezes, com leves alterações de enquadramento, transmitindo a sensação de vazio e rotina na vida dos personagens. O contexto se transforma sensivelmente pela presença do cadáver: quando o jovem policial dança música pop perto da vítima, por cansaço ou tédio, a situação se assemelha a um absurdo, mesmo que outra dança adquira um significado poético logo depois, quando “Love Me Tender”, de Elvis Presley, toma conta do ambiente. Em outras palavras, temos uma espécie de efeito Kuleshov a partir de uma mulher morta: o fato de se dançar, rir, brigar ou fazer sexo ao lado dela transforma sensivelmente qualquer ação.

    Ao mesmo tempo, Öndög propõe uma interessante discussão sobre vida e morte, sobre o humano e a natureza. O título resume bem esta ideia, já que o termo mongol significa “ovo de dinossauro fossilizado”, ou seja, algo ligado à vida (já que ovos dão origem a novos filhotes) mas também à morte (uma vez que os dinossauros foram extintos). O filme está repleto de mortes e nascimentos, desde o cruel abate de animais até o igualmente impressionante parto de um bezerro, filmado de perto. Quan’an faz questão de sublinhar o caráter de verdade através de cenas que não poderiam se forjadas, tanto pelo enquadramento quanto pelo plano-sequência.

    Além disso, o cineasta encontra soluções narrativas impressionantes para uma obra de poucos recursos – vide a cena de sexo filmada pelo flare da lanterna, ou a serenata a uma garota vista através da janela. Alguns momentos são menos inspirados – o intenso desfoque durante a autópsia -, mas não retiram o mérito de uma produção competente, esteticamente coesa e muito consciente do uso da linguagem cinematográfica. Além de impressionar pelo controle das imagens, o filme também efetua, de modo orgânico, uma bela leitura sobre o caráter transcendental da natureza ao misturar poesia, filosofia e humor.

    Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.

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