Quando o milagre é demais
por Bruno CarmeloEste drama marroquino parte de uma curiosa contradição, no caso, a proposta de um santo desconhecido. Em pleno deserto marroquino, após encontrarem uma sepultura sem dono, os habitantes acreditam se tratar da obra de um santo, razão pela qual erguem um mausoléu no lugar e passam a venerar a divindade. Ora, a crença em santos não implicaria no ato de responsabilizar alguém pelos milagres? A fé não depende de atribuir ações a um santo, a Deus, a Jesus, à Virgem Maria, a Alá, a Maomé, a Buda? A suposta identificação não seria essencial enquanto prova do milagre e reforço à potência da entidade religiosa? Mesmo assim, nesta trama, os árabes veneram a obra de um santo desconhecido que, apesar de não ter nome, possui um número expressivo de seguidores.
A premissa poderia ser interessante caso explorasse a fundo suas idiossincrasias e promovesse uma reflexão sobre o poder do imaginário na construção das coletividades. Parte da trama aponta para esse caminho, ainda que o espectador saiba, desde o começo, que tudo não passa de um mal entendido: a falsa sepultura foi cavada por um ladrão para esconder uma mala de dinheiro roubado. Por esta razão, nosso cúmplice nesta farsa não são os piedosos habitantes, mas o sujeito malicioso e mal-intencionado, algo que poderia produzir algumas faíscas interessantes no que diz respeito à moralidade. Qual é a consequência de atribuir o protagonismo ao ladrão? Estaria o diretor ridicularizando a fé através de uma raríssima obra ateia (ou cética/niilista) em pleno mundo árabe?
Não exatamente. The Unknown Saint faz questão de dizer que, embora existam falsos profetas, outros são bem reais. Para isso, equilibra duas histórias paralelas, que penam a se encontrar em termos narrativos e de tom: por um lado, o conflito do dinheiro enterrado pelo ladrão (Younes Bouab) é conduzido pela fórmula da comédia lúdica, beirando o humor físico e exagerado; por outro lado, os problemas de Hassan (Bouchaib Essamak) com o mausoléu são tratados como um melodrama lacrimoso. O diretor Alaa Eddine Aljem ressalta que, embora seu conflito principal constitua um engano, a fé é real e pode provocar danos graves. Assim, ele garante a diversão enquanto se isenta de criticar qualquer lado do espectro político-religioso, privando-se de aprofundar o espinhoso tema dos falsos messias.
A lógica do feel good movie é reforçada pelas escolhas estéticas tão claras quanto pobres. Os enquadramentos são sempre frontais em relação à fachada das casas e aos personagens, com os homens sozinhos posicionados no centro da imagem, ou uma dupla colocada nos terços exatos do quadro enquanto conversam. A câmera se congela em frente de seu objeto de interesse, à altura dos olhos. Muitos diretores extraem um humor interessantíssimo através das imagens fixas (vide Aki Kaurismaki e Elia Suleiman), mas o jovem cineasta jamais consegue criar ritmo nem volume às imagens repetitivas e acadêmicas. A montagem, que aparenta dispor de pouco material com que trabalhar, e a direção de fotografia, que se limita a iluminar todas as cenas o máximo possível, completam a impressão de amadorismo, não muito distinto dos exercícios feitos em escolas de cinema.
Perdidos entre a gravidade e a leveza, entre o drama e o humor, os atores tampouco encontram o registro adequado. O ladrão e seu comparsa parecem não existir no mesmo filme do dentista e do médico, dando a impressão de que a trama salta entre episódios distintos, como numa novela que apresenta o núcleo cômico, o núcleo melodramático, o núcleo social... The Unknown Saint parte da fábula – um registro riquíssimo em possibilidades narrativas e sociais – para se sabotar cada vez que se aproxima de um tema delicado. O ponto de vista se revela preocupado demais em agradar, em tornar a imagem fácil e acessível a todos.
Deste modo, a linguagem é reduzida a um nível infantil de construção e significado (vide as gags repetitivas do creme de barbear e dos remédios), às vezes esquecendo seu protagonista quando lhe convém, e em outros momentos mostrando-o noite após noite diante do mesmo mausoléu, em imagens muito parecidas, quando uma simples elipse resolveria o problema. Talvez o elemento mais interessante da narrativa tenha sido escondido pelo salto temporal do início, quando o ladrão rouba o dinheiro, é preso, sai da prisão e enterra o dinheiro como se fosse um cadáver. Nesta passagem, comprimida em poucos minutos, havia material suficiente para discutir a moral, para efetuar uma crônica da fé, da ganância, das ilusões em geral. No entanto, para Aljem, são mais interessantes os próximos 90 minutos de gracejos e sorrisos.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.