Esta crítica pode esclarescer a razão do fascínio ao filme para algumas pessoas.Harry Potter se desfaz diante do poder do anelDesafios éticos propostos por Tolkien provam atualidadeBrian M. Carney/ Dow Jones NewswiresO confronto entre o bem e o mal, naturalmente, é a pedra angular da ética, como parte da filosofia, desde pelo menos Platão. Na "República", um dos interlocutores de Sócrates argumenta que a "justiça" é simplesmente o que beneficia os donos do poder e que o homem mais feliz do mundo será o mais perfeitamente mau. Trata-se de uma questão complexa, e pode haver muita coisa a perguntar a um escritor sobre o que são, basicamente, histórias para crianças para aprofundar um debate moral antiquíssimo. Mas J.K. Rowling escreve dentro de uma tradição também, uma tradição literária que remonta a tempos ainda anteriores - de sagas de heróis e batalhas míticas entre as forças da luz e da escuridão. Essa tradição teve sua maior expressão do século XX na obra de seu compatriota John Ronald Reuel Tolkien, cuja obra-prima de três volumes, Senhor dos anéis, estréia nos cinemas brasileiros em janeiro.Assim, Harry Potter e Frodo Baggins, o protagonista de Tolkien, vão em breve se bater não apenas contra o mal, mas também um contra o outro., pelos corações e mentes de uma geração. Se há alguma justiça no mundo, Frodo deve ganhar. Sim, a história de tolkien é a melhor, mas ele merece o prêmio por outro motivo: concebeu a escrita fantástica como um meio propício a experiências de pensamento ético. Harry Potter pode ser absorvente, imaginativo e levemente sarcástico. Mas não é desafiante. Em termos apenas morais, o mundo de Harry é vulgar. Harry Potter e a pedra filosofal, como o livro foi chamado na Grã-Bretanha e também no Brasil, é uma clássica disputa entre o bem e o mal. Harry, naturalmente, é do bem, e o mago Voldemort, que matou os pais de Harry, é do mal. Por que Voldemort é mau? Bem, ele quer "tomar conta", ficamos sabendo, e mata as pessoas. Harry é bom porque é simpático, e não conseguimos deixar de nos identificar com ele, uma vez que Voldemort matou seus pais e tudo o mais. É uma coisa muito simples, e há pouco a discutir. Mas também há pouco a defender. Tolkien vai mais fundo. Quando Sócrates queria avaliar se o homem justo ou o injusto era mais feliz, lançou mão de um mito pelo qual um homem encontra um anel que lhe permite se tornar invisível e, portanto, cometer imprudentemente crimes terríveis, se quiser. Tolkien chama a si a investigação de Sócrates ao tentar mostrar que o homem que usa esse anel - mesmo o homem bom - se sai pior do que o que queria destruí-lo. Em resumo, Tolkien encara com ceticismo a capacidade do homem de resistir à tentação do poder absoluto. esse é um dos grandes temas do livro.Portanto, o anel de Tolkien é mais perigoso para seus personagens mais inteligentes e mais poderosos - príncipes e magos que podem ser conduzidos a crer que exercerão o poder absoluto com benevolência. O mago Saruman, um estudioso e originalmente um bom homem, é corrompido pelo anel. Ele começa estudando sua história e acaba obcecado por possui-lo. No final, está arruinado, aniquilado pela presunção de que apenas ele é suficientemente inteligente para canalizar seus poderes para o fim pretendido.Outro "mocinho", o príncipe Boromir, subestima as sinistras tentações do anel e argumenta que ele deveria ser empregado contra as forças do mal; não fazer isso, acredita, é aceitar a derrota. Ele é inteligentemente contrariado, no entanto, por outros que decidem que o anel deve ser diretamente levado para o cerne do domínio do mal e destruído. Sauron, a figura satânica que criou o anel nunca suspeita do plano porque não consegue imaginar que alguém destrua uma coisa capaz de tornar seu possuidor Todo-Poderoso. Mesmo Frodo, o "hobbit" portador do anel na história de Tolkien não é imune à tentação de usá-lo. Esse tipo de complexidade moral está simplesmente ausente dos livros de Rowling. Compare-se o emprego cuidadoso do anel por Tolkien com o emprego um tanto leviano que Rowling faz de outro grande objeto lendário, a pedra filosofal. Os alquimistas acreditavam que a peça transformava chumbo em ouro. Pensava-se que, ainda por cima, conferia a vida eterna. O pressuposto de Harry Potter é que tal pedra existe e o vilão a ambiciona para si. Nada além disso.Trata-se de uma trama digna de Tolkien; e, na verdade, imita sua narrativa em aspectos essenciais. Mas a história de Rowling não consegue apresentar nenhum dos dilemas éticos - de mortalidade, riqueza, poder - que a existência da pedra naturalmente sugere. O leitor simplesmente aceita como pressuposto que ambos os lados a ambicionam, não é atribuído nenhum peso especial a seus poderes, e Harry nunca revela interesse em utilizá-la. Ele quer simplesmente mantê-la a salvo do vilão. No universo de Tolkien a tentação do mal é a que todos os seus personagens precisam enfrentar. O argumento da história de Tolkien é que, embora as intenções tenham importância, a maneira pela qual agimos é muito mais relevante do que o motivo pelo qual agimos. Sua história, apesar de sua força narrativa, é uma refutação consistente da idéia de que bons fins justificam o uso de meios ruins.O fato de que Tolkien, que escreveu O Senhor dos Anéis durante a Segunda Guerra Mundial e o publicou pouco depois, encarava a história como uma mensagem à sua época ficou claro em seu prefácio à segunda edição. Quando os livros vieram a público pela primeira vez, muitos sustentaram a tese de que sua história dos mocinhos do Ocidente combatendo os bandidos do Oriente era uma parábola da guerra. Tolkien combateu com fúria essa analogia.Mencionar a guerra, naturalmente, equivale a lembrar-nos de que Tolkien escrevia em tempos perigosos, ao passo que a escrita de Rowling, iniciada na década de 1990, enquanto ela recebia seguro-desemprego na Grã-Bretanha, reflete o maior conforto e a maior segurança aparente do mundo pré11 de setembro. Mas se a necessidade de combater o mal, ou mesmo de reconhecê-lo como tal, podia ser ignorada antes, não pode mais agora. Da mesma maneira pela qual a emergência do nazismo e do stalinismo na década de 1930 pegou o Ocidente de surpresa, o mesmo ocorreu com a malevolência do 11 de setembro. É tempo de nos desvencilharmos da acomodada satisfação com que encaramos nossos padrões éticos.Harry Potter não será de serventia nesse sentido. Apesar de todo o seu encanto, ele se aproxima da fatuidade ética ao reduzir o bem e o mal a travesso e simpático. Tolkien fez muito mais - mostrou os desafios éticos com que todos nos defrontamos. Inquestionavelmente um escritor voltado para a sua época, Tolkien é também o melhor para a nossa.