Ciranda turca
por Bruno CarmeloDiz o senso comum dos estudos de cinema que se percebe um(a) cineasta de talento pela maneira como filma cenas de jantar. A tarefa é menos simples do que parece: numa mesa com quatro pessoas sentadas em cada lado, onde colocar a câmera? De que maneira filmar a todos? Alternando imagens do rosto de cada um? Com a câmera se movimentando de um rosto a outro? Em duplas? Com uma nuca à frente, ao lado de um rosto ao fundo? As possibilidades são quase infinitas. O resultado pode plasticamente desinteressante, ou um deleite para fãs de linguagem cinematográfica.
Esta digressão é pertinente para pensar sobre A Tale of Three Sisters. O roteiro é basicamente composto de “cenas de jantar” ou equivalentes: em grupos de três ou quatro, as irmãs turcas conversam sobre a vida no campo e os sonhos de escapismo, enquanto do lado de fora, enquanto o pai das meninas se senta com o antigo patrão delas e dois outros homens. O resultado poderia ser um tédio, uma simples repetição de imagens ditando os diálogos. No entanto, o filme oferece um banquete aos olhos. O diretor Emin Alper e sua equipe (a montagem de Çiçek Kahraman, a fotografia impecável de Emre Erkmen, a direção de arte suntuosa de Ismail Durmaz) desenvolvem uma história dinâmica cuja linguagem está perfeitamente adequada ao conteúdo, sem chamar atenção demasiada a si mesma.
O desafio se torna ainda maior pelo fato de os principais conflitos terem ocorrido antes de a história começar, ou seja, num tempo anterior às imagens mostradas. A vida de Reyhan (Cemre Ebüzziya), a irmã mais velha, e Nurhan (Ece Yüksel), a irmã do meio, foram modificadas pela experiência na cidade, quando trabalharam como empregadas domésticas para a mesma família. A mais nova, Havva (Helin Kandemir), deve seguir o mesmo caminho. No entanto, pelo uso da voz indireta e sem qualquer apoio explicativo (nada de flashbacks ou diálogos didáticos) deduzimos como cada uma se sentiu, o que aprendeu no lugar, que tipo de liberdade adquiriu na casa dos outros, e qual “crime” cometeu para justificar a demissão e o retorno à casa do pai.
A narrativa se desenvolve como uma ciranda, quase uma brincadeira de previsão cirúrgica: uma irmã provoca a outra, que lembra algo à terceira, que vai chamar o pai, que está conversando com outro homem... Em um momento, os amigos e familiares riem juntos, para brigarem na cena seguida e fazerem as pazes mais uma vez. Nesta dinâmica, descobrimos as personalidades distintas, a sociedade patriarcal rígida, a dominação masculina, a obrigação de se casar, a diferença entre a cidade e o campo, os traumas pessoais, a relação com a bebida, o sexo, a infância etc. Ao invés de deslocar às personagens até a sociedade turca, é a Turquia inteira que se resume numa única casa, em meia dúzia de personagens. Sem perceber, eles se tornam contadores de histórias.
Alper ainda encontra momentos de belíssima poesia, como a “louca do vilarejo” com suas cambalhotas, o papel do escorpião na história ou a imagem das montanhas gigantescas que cercam o vilarejo e criam uma prisão simbólica às meninas – tudo isso visto pelo vidro retrovisor de um carro, aproximando-se ou afastando-se da casa onde moram as irmãs. Além disso, as atuações são uniformemente boas, com atrizes bem escolhidas, de olhares fortes e tratamento naturalista dos diálogos, em confronto com presenças masculinas marcantes como Veysler (Kayhan Açıkgöz) e Sevket (Müfit Kayacan), dois personagens excepcionais.
Um salto temporal um tanto abrupto, no terço final, cria o primeiro e único ruído de uma narrativa que se desenvolvia, até então, com uma fluidez impecável. Mesmo assim, A Tale of Three Sisters constitui ao mesmo tempo um tour de force estético e um potente comentário social. É possível imaginar acadêmicos e estudantes de cinema se debruçando sobre cenas individuais num futuro próximo, estudando os enquadramentos, a iluminação, o agenciamento dos planos, como se faz com algumas obras-primas do cinema. A cena inicial por si só, com o rosto de uma garotinha chorando dentro do carro, já mereceria tamanha atenção.
Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.