Medos coletivos
por Bruno CarmeloÉ reconfortante encontrar, em plena era do digital, um projeto que saiba trabalhar tão bem a textura e a simbologia da película. Ghost Town Anthology foi filmado em 16mm, escolha que imediatamente o distingue da média das produções atuais, além de situar a trama num tempo à parte, espécie de contemporaneidade deslocada, obsoleta. Esta característica serve bem ao retrato de Iréné-les-Neiges, minúscula cidade de pouco mais de duzentos habitantes no Canadá. Os habitantes se sentem isolados da cidade de Quebec, vivendo uma rotina em que todos se conhecem. Por isso, no dia em que o jovem Simon morre num acidente de carro, o evento adquire um teor catastrófico para a cidade inteira.
O acidente é filmado de maneira tão brutal quanto banal. O carro percorre uma rua vazia em grande velocidade e se colide com uma barreira. A possibilidade de suicídio assombra a família e os vizinhos, de modo que a investigação, caso realmente exista, fica em segundo plano. O mais importante à rígida prefeita local é manter a ordem, garantir que a vida continue como antes. Através de imagens das vastas planícies cobertas de neve, dias enlameados e sem sol e casas silenciosas, Denis Côté constrói um ambiente desolador. Nossos dois personagens principais são símbolos fantasmáticos: Simon, o garoto morto de que todos falam, e a própria cidade sem fronteiras, sem passado e aparentemente sem futuro.
O grande trunfo do projeto se encontra na representação do luto da cidadezinha. O diretor multiplica os pontos de vista – estamos num filme coral, com uma dúzia de personagens principais – para estabelecer uma coletividade dispersa e fragmentada, através da qual sugere indícios de algum fenômeno sobrenatural pelos arredores. Se você é a única pessoa percebendo um vulto no horizonte, isso significa que você está louco, ou os outros não estão prestando atenção? Enquanto o espectador testemunha as aparições estranhas de fantasmas e silhuetas pelas ruas, os personagens acreditam estar perdendo a cabeça. A melhor forma de terror sempre foi a materialização de um estado psicológico: o medo, a fobia, a raiva, o pesar.
Por isso, as duas primeiras figuras a aparecer em Irénés-les-Neiges após o acidente constituem imagens-chave da alteridade: uma mulher muçulmana e um homem negro. Ambos estão presentes para ajudar, mas são vistos com estranheza por “não pertencerem” à pequena vila. Em seguida, começam a brotar, aqui e ali, antigos moradores da cidade, mortos há tempos. Eles apenas param, observam as fachadas dos imóveis sem travar contato. Os mortos encaram os vivos nos olhos, como se olhassem no espelho. Côté explora ao máximo a insinuação do terror, com sons em off e aparições assustadoras fora do enquadramento. Somos constantemente convidados a projetar o rosto dos nossos próprios fantasmas às silhuetas distantes.
O projeto transparece uma noção inquietante de absurdo: por que voltam os mortos? O que buscam afinal, se não entram em contato com os vivos, nem os atacam de qualquer forma? Ghost Town Anthology brinca com a noção, bastante contemporânea, de que a simples presença do desconhecido pode ser considerada um perigo, e de que é preciso rejeitar a diferença em nome da segurança. Os mortos que reaparecem, como para nos lembrar de sua existência, são ao mesmo tempo os antepassados e os esquecidos, os estrangeiros de países distantes e os estranhos da cidade grande. Em outra palavra, eles são o outro. Côté mistura habilmente os medos individuais com as fobias coletivas, comparando a morte de um indivíduo com a morte das cidades, abandonadas ou fechadas sobre si mesmas. Esta também é uma crônica da época em que nações investem mais em muros do que em pontes.
Para quem se atentar apenas às regras do gênero, o filme pode ser apreciado como pequeno thriller com suas imagens inquietantes e originais, um senso preciso da edição e atuações excepcionais (especialmente de Larissa Corriveau como Adèle, a garota com distúrbios mentais). O cineasta sabe criar estranheza sem precisar recorrer a música ensurdecedora, jump scares nem imagens fáceis de casas abandonadas, florestas assustadoras ou fantasmas atravessando o corredor. Para Côté, estranho mesmo é ver crianças que aparecem no local exato do acidente, antes de todo mundo, com o rosto coberto por máscaras e tacos de madeira na mão. Sabemos que há humanos por trás das máscaras, mas algo naquelas figuras evoca uma presença monstruosa. O terror mais assustador ainda é aquele filmado como drama; os rostos mais aterrorizantes ainda são os rostos humanos.
Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.