O blues do verão
por Renato FurtadoKarol coloca sua maquiagem, alisa o cabelo, bota um roupão asiático e, de repente, o mundo é japonês aos seus olhos. Flores de cerejeira flutuam sobre os fios emaranhados do Rio das Pedras, favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro, e a vida parece até um clipe j-pop, com seus brilhos e impossibilidades e dançarinas. Até Junior, ex-namorado da jovem, distante da cidade carioca, está lá, e com cabelo verde. Em Um Filme de Verão, estreia como cineasta de Jo Serfaty, todos os sonhos são possíveis, sobretudo em um cotidiano onde imaginar e fantasiar é a única saída que se apresenta em meio ao caos da realidade.
Parte documentário e parte ficção, esta comédia dramática agridoce — baseada nas desventuras do amadurecimento de quatro jovens da periferia do Rio de Janeiro, moradores de uma das comunidades mais afetadas pelo poder paralelo das milícias — expande-se para muitas direções ao mesmo tempo. Essa hiperatividade — que nem sempre é um trunfo, que ocasionalmente é uma armadilha —, também é, em seu outro gume, a principal ferramenta da cineasta para capturar a ebulição cultural e criadora que habita seus personagens e suas locações, por meio de uma fotografia que combina inúmeras texturas audiovisuais.
Desenvolvendo-se organicamente, sem necessariamente pontuar etapas narrativas definidas como a maioria das produções cinematográficas convencionais, Um Filme de Verão é paciente em sua progressão e o andar da carruagem pode ser confuso a princípio. Os arcos, conflitos e reviravoltas estão todos lá, mas não nos lugares tradicionais. Estão, por sua vez, na imperceptível e eficaz costura da montagem, cujo rico tecido de anedotas entrelaça as linhas traçadas pelos protagonistas Karol, Junior, Ronaldo e Caio em suas buscas por identidade e pertencimento no interminável e infernal calor do Rio de Janeiro.
O dispositivo espaço-temporal do verão, aliás, é inteligentemente trabalhado por Serfaty como plataforma crucial para o desenrolar da trama. Estando de férias, os quatro jovens começam a vislumbrar possibilidades de futuro, bem como impedimentos acarretados por suas condições marginalizadas pelo Estado, que não necessariamente passam pelo contexto escolar. É nessa zona cinzenta entre um ano letivo e outro, que o quarteto se depara com a inevitável chegada das responsabilidades da vida adulta, um duro processo de amadurecimento cuja outra face é a nostalgia do abandono da fase infanto-juvenil.
Os atores, que desempenham papéis ficcionalmente autobiográficos, são fundamentais para traduzir essa melancolia. Serfaty extrai o melhor de cada um dos jovens com uma câmera afetiva, um olhar silencioso e quieto que desvenda o que o olhar guarda. Mais do que nos divertirmos ou nos relaciornamos com as dúvidas e piadas expressas pelo quarteto, os protagonistas brilham mesmo nos instantes de solidão, onde evidencia-se as suas naturezas internas, os seus conflitos inauditos e as verdades que não desejam compartilhar, eminentemente em um contexto que sempre espera algo de específico deles.
Se Junior é obrigado a deixar a cidade e abandonar o sonho de fazer faculdade, Karol batalha, por sua vez, com a descoberta da sexualidade. Caio, por outro lado, preso entre dois lados de sua família, é obrigado a renegar a umbanda a favor da doutrina evangélica, ao passo em que Ronaldo sofre com preconceitos velados e com afetos desconectados. Em suas trajetórias singulares, potencializadas por vinhetas ora cômicas, ora entristecidas, os quatro navegam os meandros e as contradições de uma cidade impossível, tão sonhada quanto destruída, tão paradisíaca quanto infernal como o Rio de Janeiro e sua periferia.
Falando em espaços alternativos, por assim dizer, Um Filme de Verão também opera é mais uma adição à importante e atual tendência do cinema brasileiro de ressignifcar sua perspectiva sobre os locais periféricos. Antes, os espaços marginalizados e suburbanos foram ou trabalhados pelo viés criminal (Cidade de Deus), ou pelo viés cômico, como nas "globochanchadas". Aqui, no entanto, Serfaty pega a contramão, explorando a favela como um centro de efervescência artística e afetiva: os protagonistas têm um espírito criador implacável que só os faz ser ainda mais cativantes e encantadores aos nossos olhos.
Competente e engajante, apesar de suas evidentes restrições orçamentárias e técnicas, Um Filme de Verão captura com afeto e precisão a realidade do jovem carioca periférico. É uma ode, enfim, às gambiarras que precisam ser realizadas por uma faixa de sociedade que não recebe oportunidades o bastante, mas que também jamais deixa de sonhar, esperar e que, mesmo com todas as adversidades, tenta concatenar suas complexidades intrínsecas. Mais ou menos como a própria cineasta faz nesta estreia; Serfaty pode errar a mão às vezes, mas é certo que ela improvisa e triunfa neste blues do verão.
Filme visto na 22ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2019.