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    A Rainha Nzinga Chegou
    Críticas AdoroCinema
    1,5
    Ruim
    A Rainha Nzinga Chegou

    A realeza vista à distância

    por Renato Furtado

    Uma frenética orquestra percussiva, de sonoridade encorpada e ritmo altivo, anuncia a entrada triunfal da Rainha Nzinga, uma das mais importantes figuras das histórias africana e negra. Líder do Reino do Ndongo, território que hoje faz parte da Angola, a monarca foi responsável por enfrentar, em pé de igualdade, os avanços imperialistas e escravagistas dos portugueses, nos idos do século XVII, um passado que pode ser distante, mas que ainda se faz muito presente. Porque a relevância e a memória da alteza, voluntariamente esquecidas por aqueles que construíram a História, são resgatadas pelo documentário A Rainha Nzinga Chegou.

    A protagonista desta não-ficção, contudo, não é a soberana do Ndongo, mas sim uma comunidade inteira: a do Reino Treze de Maio, uma irmandade negra de caráter essencialmente religioso que descende da espiritualidade e das normas praticadas por Nzinga, mas que não está na África. Essa confraria específica — onde, seguindo a tradição estabelecida pela guerreira e negociadora política ancestral, as mulheres têm papel de destaque máximo — está muito perto de nós, "escondida" em Minas Gerais. Porém, a despeito de seus méritos como não-ficção, a vibração e efervescência fogem ao domínio do filme codirigido por Junia Torres e Isabel Casimira Gasparino, atual rainha do Treze de Maio.

    Rodado durante um período de 16 anos e em uma ampla variedade de texturas audiovisuais, A Rainha Nzinga Chegou é um documentário linear que acompanha a transição de "governo" da irmandade mineira de Isabel Cassimira para a realizadora deste projeto, motivado pelo falecimento da primeira. Esta, aliás, é uma figura extremamente carismática, cativante, espirituosa e, acima de tudo, inteligente — adjetivos que são cruciais para todo bom governante que se preze — que deu o tom da vigorosa ebulição cultural para o seu Reino desde que recebeu a coroa de sua mãe. Como personagens, todavia, nem Cassimira e nem sua filha cineasta e monarca ganham os arcos dramáticos e narrativos que merecem.

    Ao limitar-se à observação distanciada, o filme resulta frio, como se a soberana tivesse encomendado uma leitura etnográfica e científica sobre seu povo em uma embalagem de cinema. Mas pelo próprio caráter formidável e encantador destas rainhas, que se transmite sem esforço e ocupa o universo audiovisual e nosso imaginário de imediato, desejamos saber mais. Desejamos nos aproximar dessa joia raríssima que é esta confraria e conhecer mais sobre a conexão Brasil-África que está em sua fundação porque somos, no fim das contas, estrangeiros à dinâmica do Reino Treze de Maio. Sem embargo, quanto mais tentamos nos aproximar, o longa recua em seu convite inicial e afasta-se de nós.

    Burocrática, a montagem de A Rainha Nzinga Chegou limita-se ao expediente de proferir sentenças factuais: uma rainha morre, sua filha atinge o posto que era da mãe e a nova monarca viaja para a África, com o objetivo de aumentar seus conhecimentos sobre seus antepassados — tudo isso é projetado a despeito do espectador. Apesar do importantíssimo trabalho de preservação cultural que um documento como este realiza em relação ao microcosmos cultural e político do Reino Treze de Maio, esta não-ficção, convencional por natureza, foge de sua própria linearidade. Assim, somos prontamente informados sobre estas mulheres e seus feitos, mas com a frieza das letras: nunca chegamos a conhecê-las de fato.

    O objetivo acompanhamento do desenrolar histórico da comunidade evita a teleologia, uma abordagem narrativa que desemboca em um resultado fílmico último tangencial e oblíquo: qual é, enfim, a razão de ser deste projeto? Por que vemos as cenas que vemos, frequentemente extensas demais, se não nos relacionamos diretamente com estas personagens? E para além de uma problemática no que se refere à construção dos arcos em si, também há a dimensão política, apenas fragilmente aludida por A Rainha Nzinga Chegou, que só faz as perguntas não proferidas gritarem mais alto: qual é a relação estabelecida pelo Reino Treze de Maio com a sociedade e o mundo que estão ao seu redor?

    Os membros do reinado negro mineiro também são, no fim do dia, cidadãos brasileiros: bebem cerveja de marcas conhecidas, usam roupas cotidianas em seu dia-a-dia e praticam sua fé, um credo sincrético que une santos e orixás em puro estado de harmonia, a umbanda. Mas pertencem, por outro lado, a uma comunidade de natureza muito singular, o que por si só já provoca impactos e reverberações inúmeros. Desse modo, é de se pensar: qual é a relação da irmandade com a ideia de identidade brasileira? Qual é o lugar deste grupo dentro do Brasil e, ainda mais, quais são os futuros possíveis desta cultura em meio ao novo estado das coisas no país?

    Quais são e foram, ainda, os ecos causados no reinado mineiro pelos avanços sociais conquistados pelos negros no Brasil no início do século XXI? Quais são os aspectos que as lutas da comunidade negra em nosso país estão presentes nos ideais do Reino Treze de Maio e vice-versa? E mais: que ensinamentos podem ser trazidos pela raiz dos combates das realezas africanas contra os interesses colonizadores e como a crucial história de resistência de Nzinga pode ser lida nos dias de hoje? Enquanto estes paralelos são claros para que eles seguem e, acima de tudo, para aqueles que participam direta e ativamente dos movimentos sociais negros no Brasil, a ausência dos mesmos neste documentário é muito sentida.

    Não há uma necessidade de se abrir para a esfera política, é claro, mas isto certamente ajudaria a complexificar a apresentação deste universo inédito, repleto de particularidades intrincadas que mereciam um tratamento mais apurado. Ou, ao menos, mais afetivo em sua natureza celebratória do Reino Treze de Maio. Como rainha, Gasparino raramente nos deixa vislumbrar mais do que o mínimo sobre si mesma e sua comunidade. Pode até ser um instinto de proteção inconsciente, mas que complica o andar da carruagem. Longo demais apesar de sua brevíssima duração, A Rainha Nzinga Chegou habita o espaço que há entre o tributo e a análise, deixando a sensação de que o verdadeiro filme ainda está para começar.

    Filme visto na 22ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2019.

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