O detetive brincalhão
por Bruno CarmeloPara abordar um fato histórico tão importante quanto a morte de Dag Hammarskjöld, o mockumentary era certamente a última ferramenta que se esperaria do cinema. De acordo com os registros oficiais, o secretário-geral das Nações Unidas sofreu um acidente de avião enquanto sobrevoava a Zâmbia, em 1961, mas há indícios de um complô para matar o político que prejudicava os interesses econômicos de grandes corporações. Na intenção de investigar as pistas do possível ato criminoso, o diretor Mads Brügger se converte em personagem, colocando-se em cena com um uniforme, equipamentos de pesquisa e duas secretárias.
“Tudo pode ser uma teoria da conspiração idiota”, ele avisa o espectador. “Se for o caso, peço desculpas”. Nos moldes histriônicos de Michael Moore e Morgan Spurlock, o cineasta dinamarquês constitui o personagem principal de seu filme: ele aparece na maior parte das imagens, além de narrar os fatos históricos e debater sua própria carreira de jornalista. Ainda que converse com dezenas de pessoas, é o entrevistador quem ocupa a maior parte da narrativa. Brügger admite não ter nenhum interesse em Hammarskjöld enquanto político, apenas como vetor de teorias da conspiração que seriam divertidas de explorar. Em outras palavras, ele faz do protagonista um objeto de estudo qualquer. O diretor se interessa pelos fatos por enxergar neles uma possível ficção.
Talvez o principal (único?) interesse deste projeto se encontre em sua leitura sintomática. O filme dialoga diretamente com estes tempos de obscurantismo nos quais fatos se tornam questão de crença: “minha burrice vale tanto quanto a sua inteligência”. Se eu acredito que algo é real, ele pode ser, por mais que existam evidências em contrário. Afinal, há “fatos alternativos”, há “fake news” espalhadas por aí, e o mundo pode se adaptar aos nossos gostos. Chega da doutrinação dos especialistas: quem são eles para nos dizer o que realmente aconteceu? É tempo de reescrever a História, colocar nela tudo o que queremos. O passado se tornou um livro em branco para entusiastas das conspirações como Brügger, dotado da retórica de um youtuber e de ferramentas de comunicação dependentes do espetáculo e do clickbait.
É possível que muitos dos elementos apresentados no filme sejam reais, e sustentem a tese do assassinato. No entanto, o interesse evidente do diretor não se encontra numa verdade final, mas nas ramificações do caso: a narração fala numa seita secreta, na inoculação voluntária do HIV enquanto ferramenta para “matar negros”, numa possível dominação econômica da África em relação ao resto do mundo, no envolvimento da CIA através de uma carta de baralho deixada no colar do cadáver. São tantos caminhos, elementos e nomes que muitos deles poderiam ser reais, ao passo que tantos outros soam irreais. Pouco importa, afinal, e aí se encontra o perigo: diante da possibilidade de encontrar uma resposta definitiva, o cineasta ignora evidências e continua a buscar por todos os lados, porque a procura o diverte mais do que o fim do jogo.
Enquanto narrativa de investigação, O Caso Hammarskjöld não difere tanto dos programas policiais da televisão por assinatura. A narração salta rapidamente de um nome a outro, de um ano a outro, listando evidências sem tempo real de discutir as implicações da mesma, mas ciente de que a simples menção de um novo foco de pesquisa desperta tensão. Estamos presos num mecanismo retórico: não interessa onde a investigação vai chegar, contanto que vá o mais longe possível. Imagina-se um público sedento por entretenimento, razão pela qual é preciso reter sua atenção com novos elementos de frisson. Quanto mais imprevisíveis são as acusações de Brügger, ao longo de extenuantes duas horas, mais improvável soa a sua tese. Não seria surpreendente se ele chegasse ao final e revelasse que todas as pessoas são de fato atores contratados para o show.
Pior do que isso é ver a maneira debochada com que o cineasta aborda o material humano deste episódio. Além de desdenhar do trabalho político de Dag Hammarskjöld, o diretor contrata duas secretárias negras pelo simples prazer de fazê-lo, como ele mesmo admite, e então pede que anotem suas falas, ao passo que explica o contexto histórico a cada uma, supondo que não conheçam nada da trajetória do próprio país. O privilégio do homem branco e europeu diante da mulher negra e africana poderia ser bem resumido nestas arrogantes trocas de informação. O prazer com que ele detalha às duas os planos de “matar negros” é asqueroso. Outros homens negros encontrados pelo caminho, a exemplo da cena do aeroporto, são tratados como serviçais. Brügger enxerga no mundo ao seu redor um terreno de brincadeiras, sem se preocupar com a responsabilidade moral e ética por trás de seu empolgante RPG.
Filme visto na 24ª edição do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, em abril de 2019.