Xeque-mate no comportamento humano
por Sarah LyraRainha de Copas é um daqueles casos em que o espectador consegue antecipar algumas das graves consequências geradas pelas ações dos personagens, mas nem por isso torna o processo menos impactante, muito pelo contrário. Quando bem utilizado, o recurso narrativo de avançar no tempo para mostrar um fim trágico pode ser uma tortura ainda maior, por termos ciência de que por mais que torçamos por um desfecho diferente, menos cruel, o destino dos personagens já está selado. Na coprodução sueca-dinamarquesa, a diretora May el-Toukhy nos conduz com maestria por uma trajetória angustiante, revelando nossa impotência diante dos acontecimentos, e despertando uma série de sentimentos contraditórios que nos obriga a rever nossos próprios valores.
Anne (Trine Dyrholm) é um reflexo de tudo aquilo que idealizamos em termos de conquistas pessoais e profissionais e moral. Ela é extremamente competente e respeitada como advogada dos direitos da criança e do adolescente; lida com casos de abuso físico e sexual; ajuda pessoas em situações de vulnerabilidade; e tem um casamento saudável e duas filhas gêmeas. Ao saber da chegada do enteado adolescente e problemático, aceita quase sem nenhuma hesitação o fato de que um novo elemento será inserido em sua dinâmica familiar. Ela não apenas compreende a necessidade de atenção e cuidado do jovem Gustav (Gustav Lindh), como busca ativamente integrá-lo ao novo ambiente. Mas não o faz de maneira passiva-agressiva, algo tão explorado pelas artes ao retratar madrastas, Anne parece genuinamente priorizar uma convivência saudável entre casal, filhos e enteado na mesma casa, sem necessariamente esperar algum reconhecimento.
É interessante observar a criatividade com que ela lida com um adolescente rebelde, ao mesmo tempo em que se recusa a fazer o papel de madrasta-vilã. Ao saber, em uma das cenas iniciais, que Gustav foi responsável por orquestrar um roubo na própria casa, Anna oferece a oportunidade de manter o segredo entre eles, pedindo em troca apenas que seja mais atencioso com suas irmãs mais novas e faça um esforço para ser parte da família. Nesse ponto, tudo parece fluir dentro do esperado, com Anna acumulando ao impressionante "currículo" o fato de saber lidar até com o que aparentava ser um desafio capaz de desestabilizar toda a sua rotina. Ao poucos, no entanto, ela passa a demonstrar um certo tédio com seu próprio sucesso, se tornando a figura central de um rico estudo de personagem, que sabota sua vida perfeita ao seduzir e iniciar um intenso relacionamento sexual com o enteado.
Por conhecermos tão bem a protagonista, suas frustrações, seu dia-a-dia, seu cuidado com as vítimas de abuso, sua presença como mãe e esposa e suas inseguranças — inclusive com o corpo, o que fica claro na cena em que se olha no espelho e estica a pele da barriga — , nada mais natural do que uma tendência a ter empatia por ela, acompanhando os acontecimento sob sua perspectiva, mesmo diante de uma postura imperdoável. Estamos, até certo ponto, dispostos a torcer por uma quebra de ética, e relativizar o que não poderia, jamais, ser relativizado. May el-Toukhy demonstra um domínio impressionante dos conflitos e contradições que impõe ao espectador, nos impedindo de qualquer tentativa de vista grossa para não ver o que está diante de nós. Em um determinado ponto da trama, no entanto, a diretora nos obriga a fazer uma escolha, como se dissesse: "a ambivalência termina aqui, a partir deste ponto, Anna segue por um caminho sem volta", nos forçando a romper com todo elo criado com a personagem até então. O ultimato dado pelo longa vem como um choque: como abrir mão da personagem que nos guiou até ali, a quem conhecemos tão profundamente e em quem gostaríamos de nos espelhar?
A atuação de Lindh na pele de um jovem forte, mas completamente fragilizado, é um dos grandes aliados do filme no sentido de contrapor a força de Anna, que ironicamente transforma o garoto no tipo de vítima que normalmente defende em seu trabalho. A dinâmica entre os dois se torna um jogo da xadrez, no qual Gustav não tem a menor chance de vitória. Em determinado ponto, o roteiro parece sugerir uma saída óbvia para o garoto, envolvendo um gravador de fitas. Qualquer pessoa minimamente maliciosa teria usado esse (ou qualquer outro recurso do tipo) para produzir provas contra a protagonista. Assim, é comovente notar a ingenuidade de Gustav ao confrontar a madrasta sobre a mentira contada por ela, com o intuito genuíno de persuadi-la a mudar de ideia. É também reconfortante ver que o roteiro privilegia a contextualização das ações e reações dos personagens, e foge à tentação de inserir uma vingança ou solução fácil para impulsionar a trama, permitindo que os desdobramentos tomem um rumo mais realista, já que uma vítima de abuso dificilmente teria a frieza de pensar em uma armadilha elaborada e incriminadora diante de seu abusador.
Aliada a uma fotografia gélida, contrastada com algumas tomadas quentes em contraluz, e atuações fortes, Rainha de Copas se encerra da maneira cruel já sugerida na cena inicial, em que o instinto de preservação de Anna — e certamente a do ser humano, de modo geral — prevalece e a torna capaz de fazer coisas que ela mesma julgava impensáveis até então. Não só o desfecho, como todo o desenvolvimento do filme, é um convite à reflexão dos nossos códigos morais, da nossa disponibilidade em quebrá-los quando se torna conveniente e dos efeitos gerados naqueles que nos cercam.