A MARATONA DE BRITTANY – DELEUZE E OS DESEJOS: O PODER DA AMIZADE
A maratona de Brittany (Brittany Runs a Marathon), direção e roteiro de Paul Downs Colaizzo, é baseado na história real de uma sua amiga, fato que ele presenciou de perto e transformou no filme. A princípio, parece ser uma comédia inocente, mas, sob um bisturi dissecador vemos tratar-se, utilizando a glamourizada maratona de Nova York como fundo, de uma transposição para a tela de questões profundas sobre a vida: relacionamentos tóxicos, pseudo aceitações, raiva, discriminação, abusos, superação, processos de conscientização e, principalmente, de AMIZADES. Brittany (Jillian Bell), 30 anos, sedentária, frustrada profissionalmente, sem vida amorosa, sem dinheiro, obesa, de vida em bares noturnos e usuária de drogas, é recepcionista de um teatro de Nova York, mas também, em dupla jornada, trabalha como cuidadora do cachorro de um casal ricaço que passa semanas fora de Nova York. No luxuoso apartamento de seus empregadores, ela conhece Jern (Utkarsh Ambudkar), contratado para passar todas as noites no local. Dois divergentes, com sérios questões disfuncionais, duros, que passam a morar ali clandestinamente, até serem descobertos e despedidos. Têm um relacionamento suis generis, de desencontros relacionais nos encontros físicos. Brittany divide apartamento com Gretchen (Alice Lee), com que tem uma amizade tóxica, ambas, juntas, frequentam as agitadas noites de New York levando uma vida solitária de bebedeiras, drogas, sexo casual, encontros buscados pela internet, sem planos.
Abusada na infância por sua obesidade, Brittany se torna uma adulta que esconde seus questionamentos disfuncionais num personagem “falsa-alegre”, irresponsável e irônico. Ao chamado do corpo, este oráculo da vida, procura ajuda médica, sendo diagnosticada com excesso de gordura no fígado, é aconselhada a mudar sua rotina e levar uma vida mais saudável. Decide, então, se exercitar confrontando as dificuldades do corpo e da mente. Na vida real Jillian, durante as filmagens emagreceu vinte quilos para tornar real a transformação da personagem
Com ajuda de sua vizinha Catherine (Michaela Watkins), a “riquinha”, que a primeira vista lhe é detestável por, ao seu dizer, ter uma vida perfeita, aparência que logo se desvela e de Seth (Micah Sock) um gay que deseja virar corredor para impressionar o filho que tem com seu companheiro, pois ele teme que o garoto o considere pouco atlético, Brittany decide participar da maratona de Nova York, iniciando um intenso treinamento sofrendo com oscilações de temperamento e dedicação.
Não é objetivo aqui mostrar cada fato disfuncional, os transtornos nos personagens, que são muitos ricos em detalhes, sendo necessário assistir o filme pelo ao menos umas três vezes, a fim de capturar o sentido e o valor de cada evento.
O que eu quero aqui chamar a atenção, como Psicólogo, é o modo como se dá o processo de “cura” dos personagens, tendo como base alguns ensinamentos da filosofia de Deleuze-Guattari, principalmente nos livros Anti-Édipo e Mil Platôs.
Em princípio, é bom dizer que não há nenhum Psicólogo Clínico, Psicanalista ou qualquer espécie de terapeuta que seja responsável pelas “curas” de Brittany, Jern, Seth e Catherine. Tudo se dá em torno de relacionamentos, encontros de corpos e mentes, das amizades construídas.
Deleuze-Guattari, Spinozistas, ao desconstruir o fundamento do desejo freudiano e da tradição, desde Platão, como falta, afirma que o querer é construção, fruto do encontro dos corpos e dos relacionamentos. Poderíamos sem medo dizer que o tema do filme é o PODER DA AMIZADE.
Pois bem!
O que se vê no filme de Colaizzo são “curas”, sem terapia, acontecida pelos encontros de corpos e mentes e relacionamentos que de alguma forma querem desejar, pela amizade. Os desejos acontecendo no ato de desejar, frutos dos encontros. Não é à-toa que o relacionamento de Brittany com o internauta não frutifique, em função de sua artificialidade.
Brittany, sintomática do abuso que sofrera em criança, está sempre em fuga, evitativa e desconfiada aos apelos de amizade de Catherine e Jern, o que não é para menos para alguém que desde a infância teve que refutar o olhar do outro com medo da repetição do abuso.
Mas, como diz Nietzsche, a Vontade de Potência, de Vida, prevalece e os corpos, no bom encontro, no dizer de Spinoza, se confraternizam. Quase, porque Brittany ainda.......
Manoel Vasconcellos Gomes é Psicólogo (CRP 5/49191), Advogado (OAB/RJ 202.212), Bacharel em Ciências Náuticas, Engenheiro Têxtil e Filósofo.