A Liberdade é Linda: “Tinnitus”
Por Paulo Allegrini
Novo filme de Gregório Graziosi surpreende pela elegância e estilo
Uma piscina. Duas nadadoras. Um impasse. O som ao redor. Isto é parte do universo do segundo filme do paulistano Gregório Graziosi, multi-premiado cineasta com seus curtas (Cannes, Locarno, Toronto) e com “Obra”, seu primeiro longa. “Tinnitus” exibido no prestigioso Festival de Karlovy Vary, no qual Glauber estreou seu “Barravento”, estreia agora no Brasil, em Gramado, é uma prova de que a “síndrome do segundo longa” pode ser superada, desde que haja fôlego para isso. E nessa raia, Graziosi deu provas de que fôlego não falta.
A estrutura em vertigem, desse novo filme, dá o tom desde o inicio da trama, e se é de competição que estamos falando, é porque ela é a palavra de ordem nos dias de hoje. Graziosi não esconde seu desejo de explicitar a disputa, a inveja, a rasteira, o golpe, como motor da história (humana, aliás), recriando, para nosso espanto, quase que um “Showgirls” aquático. Sempre na chave do World Cinema.
A imagem que revela o som. O som que revela a possível surdez. O zumbido no ouvido de Marina, a personagem principal, gera angústia e toda sorte de desalinhos e desavenças na sua trajetória fílmica. O mundo do nado sincronizado, e olímpico, é desvendado com todas as nuances de um Tsai Ming Liang e de um Jacques Audiard (“Ferrugem e Osso”), aliás Tsai pode ser interpretado, em “Tinnitus”, como o Louco da Liberdade, tal a força com que o filme de Graziosi mescla o transe de duas metrópoles irmãs: São Paulo e Tóquio. Ambas embebidas em mistério hitchcockiano, do início ao fim.
Um cinema para Cegos e Surdos? Talvez a dificuldade do espectador médio, quase sempre alienado pelos “Vingadores”, no acesso a essa obra de Graziosi, seja o fato de o cineasta transitar num espectro cinematográfico de amplitude vasta e referencial estético complexo. De início temos ecos de Leni Riefenstahl, para em seguida cairmos no universo de David Cronenberg (de quem Graziosi é fã declarado), com “Crash”, para no final invadir o terreno caudaloso de Antonioni (a cena da Bola Vermelha), Kon Ichikawa (o Gato Preto que aparece de surpresa) e, é claro, Hitchcock: um corpo que cai... na piscina!
Mas, superado esse esforço, o espectador é recompensado com uma série de eventos físicos, e metafísicos, dignos de um mestre (zen), na pele, por exemplo, de um majestoso Antônio Pitanga. Existe no enredo um embate entre a fluidez das relações, dos diversos personagens, e a rigidez do esporte. O código espartano esbarra na lassidão dionisíaca, e com isso, a trama se desenvolve através de uma atmosfera onírica que toma conta da fita do meio para o fim, quando temos a cena antológica da Sala de Cinema, na qual as personagens dormem. Dormir no filme é sonhar?
Fica claro que Graziosi e sua equipe fizeram uma extensa e exaustiva pesquisa sobre o que é ser uma atleta olímpica de nado sincronizado, o mito do “Doppelgänger, e o que significa cair mil, duas mil vezes numa piscina e lentamente perder a audição. Tudo isso para permitir uma submersão do espectador, em nível catártico e sistêmico, sem deixar de lado a sensação de vivermos imersos numa gigantesca piscina de prédios, arranha-céus, estampados sobre um temeroso céu cinza, de dar medo. As profundezas da alma, nos entregam a maior redenção, estamos finalmente livres. A liberdade é linda. “Tinnitus” nos leva da exuberância ao esplendor. Ou, parafraseando uma das personagens de Graziosi, para ver esse filme você “não precisa ter medo!”, basta estar de olhos e ouvidos abertos. Sempre.