Tão atual quanto 1973
por Sarah LyraConduzir um documentário sobre um tema tão extensamente abordado no cinema, e ao mesmo tempo trazer frescor e singularidade à narrativa, não é tarefa fácil. Fazê-lo embasado em uma estrutura convencional e linear, sem empregar artifícios imagéticos e sonoros inovadores, é ainda mais desafiador. Ao assistir a Santiago, Itália, de Nanni Moretti, entendemos imediatamente estarmos diante de uma obra madura, que sabe onde sua força reside e não hesita em simplificar seus processos a fim de priorizar uma mensagem mais complexa. Neste novo trabalho, o diretor italiano exibe uma confiança admirável ao apostar em uma narrativa impulsionada quase que exclusivamente pela memória dos entrevistados, abrindo mão de explorar um grande volume de imagens de arquivo e instigando o imaginário do espectador em relação aos acontecimentos relatados. Aqui, as imagens são utilizadas de maneira pontual, sugerindo mais do que escancarando.
O documentário adota um ritmo acelerado desde a primeira cena, mas, simultaneamente, usa o tempo necessário para uma contextualização histórica aprofundada sobre os eventos que resultaram no golpe de Estado chileno, em 11 de setembro de 1973, quando as forças armadas do país bombardearam o Palácio de La Moneda e depuseram o presidente Salvador Allende, líder do primeiro governo socialista democraticamente eleito na América do Sul. Apesar da montagem ágil e incisiva de Clelio Benevento, o filme tem a sensibilidade de perceber os momentos de tensão que pedem uma quebra no ritmo para retomar o fôlego. Isso fica claro, principalmente, nas cenas em que os entrevistados são confrontados e desestabilizados por memórias do passado. Ao invés de ocultar os vários segundos de silêncio entre uma resposta e outra, Moretti entende que os hiatos não apenas humanizam e revelam sutilezas dos entrevistados, como nos envolvem com as profundas marcas que ainda carregam, quase 50 anos depois.
Uma das cenas mais reveladoras nesse sentido é a do depoimento da jornalista Marcia Scantlebury, que foi presa e torturada na Villa Grimaldi. Quando Scantlebury descreve a forma como os militares aplicavam eletricidade nas zonas genitais das mulheres, por exemplo, é triste notar como ela faz piadas e dá gargalhadas sobre os traumas enfrentados, revelando uma inabilidade justificável de lidar com os acontecimentos da própria história, uma característica reconhecida por ela mesma, quando diz que falar sobre a tortura é uma maneira de “exorcizar a dor”.
Após a devida contextualização dos horrores do regime militar, o filme avança para estabelecer a relação entre Chile e Itália antecipada pelo título, e é interessante observar como os relatos se tornam mais leves e há até um certo saudosismo na fala dos entrevistados. Por mais amedrontados que estivessem, eles relembram com carinho o período em que foram acolhidos pela embaixada italiana, em Santiago. Alguns deles compartilham histórias engraçadas sobre o grande salão de entrada ter virado um quarto improvisado, onde mais de 50 pessoas dormiam ao mesmo tempo. Uma senhora fala do período em que precisou passar suas noites dentro de uma banheira, quando o salão da embaixada já estava lotado. Outros relembram o fato de serem crianças quando tudo aconteceu e como gostavam de brincar de 'Polícia e Refugiado', uma versão do clássico 'Polícia e Ladrão' adaptada para a realidade deles, revelando também a surpreendente capacidade de leitura das crianças sobre o ambiente que as cerca. As histórias são infinitas e têm em comum o fato de todos eles terem conseguido encontrar algum tipo de felicidade no exílio.
Daí em diante, o documentário foca na relação que essas pessoas desenvolveram com a Itália e o sentimento de ambivalência em relação ao país. De um lado, o alívio de não serem perseguidos. Do outro, a perda da nacionalidade. Ao reforçar o forte vínculo emocional e empregatício dos chilenos com a Itália, Moretti aproveita para fazer um breve comentário sobre a situação atual dos refugiados, oferecendo um contraponto à noção de que imigrantes aumentam ou intensificam os problemas sociais da nação acolhedora.
Aqui, é válido ressaltar a familiaridade dos acontecimentos de Santiago, Itália com o momento atual da política global. Por mais que saibamos que os relatos do documentário são referentes a uma época e lugar específicos, é inquietante perceber como, após meio século de História, pouco evoluímos em questões sociopolíticas. As semelhanças com a atualidade incluem as constantes interferências do governo norte-americano nas democracias da América Latina, o revisionismo histórico usado para justificar um golpe de Estado (note como a fala dos militares entrevistados propaga a ideia de que eles foram os oprimidos, e não os opressores), a crise migratória global e a ascensão da extrema-direita.
Os poucos problemas de Santiago, Itália residem justamente no fato de que o filme sugere uma extensa abordagem na relação entre Chile e Itália, mas se limita a explorá-la superficialmente, cedendo pouco tempo de tela para o tema e nos deixando curiosos sobre a adaptação dessas pessoas a um novo país. Ainda assim, a impressionante capacidade do roteiro de costurar diversas problemáticas e seus desdobramentos, aliada ao tratamento minucioso dado aos depoimentos, evidencia o fio condutor de Nanni Moretti como o grande mérito do projeto.