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    De Pai para Filho
    Críticas AdoroCinema
    2,0
    Fraco
    De Pai para Filho

    Desconhecidos íntimos

    por Bruno Carmelo

    Em De Pai para Filho, o espectador pode demorar um pouco para discernir os protagonistas e seus objetivos. A cada cena aparecem novos rostos, novas locações, em conversas aparentemente deslocadas dos momentos anteriores. Salta-se entre conflitos e temporalidades numa jornada labiríntica. Aos poucos, percebe-se que o inventor Van Pao Te (Michael Huang) é vítima de uma doença em estágio avançado, e por causa disso, decide retomar contato com o pai, que sequer sabe se ainda está vivo. As informações são distribuídas em doses homeopáticas: a doença nem parece tão grave assim, Pao Te é um inventor que não vemos inventar objeto algum, o homem jamais demonstra qualquer saudade do pai antes de procurar por ele.

    Enquanto negligencia a coerência narrativa, o diretor Hsiao Ya-chuan dedica todo o seu esforço à construção de atmosfera. As cenas são cuidadosamente pensadas para alternar entre o preto e branco profundo e o colorido das luzes estroboscópicas de festas, através de uma câmera que jamais para de deslizar entre os objetos e personagens, mesmo quando captam personagens e objetos estáticos. O cineasta filma seus personagens ao fundo de corredores vazios, espremidos pelos batentes das portas, ou ainda em grandes planos aéreos no pátio interno de um arranha-céu. O posicionamento de câmera e a beleza da imagem constituem as preocupações centrais do diretor.

    Isso não impede o conteúdo de soar um tanto disperso: visto que cada imagem é pensada individualmente, o conjunto demonstra pouca coesão. Apesar de conflitos narrativos lançados aqui e acolá (a doença de Pao Te, a paixão do filho Fan Ta-Chi por uma garota que acaba de conhecer), eles não se desenvolvem. A jornada de busca pelo pai só começa na segunda metade, após mais de uma hora de duração. Antes disso, vemos os homens perambulando, conversando de modo íntimo com pessoas que o espectador ainda desconhece. De Pai para Filho lança seu público numa trama em andamento, sem fazer questão de situá-lo: caso ele não entenda algumas das dezenas de relacionamentos em tela, o roteiro não tratará de esclarecê-los mais tarde – até porque muitos personagens desaparecem, e jamais voltam a atravessar a narrativa.

    Quando os personagens partem numa viagem mais linear, o drama enfim transmite com clareza as dúvidas, inseguranças e dores destes dois homens, além de revelarem aspectos importantes do pai ausente, que o filho doente curiosamente nunca procurou saber (a profissão dele, por exemplo). No entanto, Hsiao Ya-chuan trata de abandonar rapidamente este caminho para retornar às pirotecnias da câmera, às associações meramente sugestivas entre os personagens, aos saltos do presente ao passado, e vice-versa. Se a descoberta de informações relativas ao pai deixou alguma marca profunda no filho adulto e no neto jovem, isso caberá ao espectador decidir. O diretor é definitivamente avesso a psicologismos, preferindo os deslocamentos mecânicos e silenciosos dos homens através de tantos cenários e épocas.

    O resultado levanta dúvidas sobre as concessões que o cinema não-narrativo está disposto a fazer em termos de produção de sentidos, a fim de manter a sua liberdade criativa. Para se dedicar à estética, é preciso abandonar mão da construção psicológica dos personagens? Para fugir ao (melo)drama, é necessário encarregar as imagens de transmitir sozinhas todo o humanismo da situação? O refúgio do cinema não-comercial passa necessariamente pela desconstrução dos sentidos, da temporalidade, pela ausência de conflitos e pela narrativa hipnótica (vide Pássaros de Subúrbio, Caminhos Magnéticos, Imagem e Palavra)? Um dos maiores riscos do cinema fictício de vocação experimental consiste em restringir tanto seu potencial de comunicação que acaba se fechando sobre si mesmo.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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