Perdido numa lenda
por Bruno CarmeloQuando um raríssimo filme de Gana chega aos cinemas brasileiros, ainda que seja no contexto excepcional de uma Mostra de cinema, ele desperta curiosidade e interesse por sua simples existência: o que tem sido produzido no país? O que os cineastas da África negra, dotados de menos oportunidades do que aqueles do norte do continente, têm oferecido em termos de estética, narrativa, discurso? Qual é a aparência do cinema contemporâneo da África Ocidental? Seria ingênuo pensar que uma única produção como O Enterro de Kojo poderia responder sozinha a questões tão amplas. Mas ela ajuda a fornecer uma primeira impressão, para o bem ou para o mal.
O cineasta, artista visual e cantor de hip-hop Blitz Bazawule não pode ser criticado pela falta de ambição. Mesmo dispondo de poucos recursos, ele foge à estética de observação e busca criar uma série de metáforas visuais com efeitos de câmera, montagem não linear e iluminações multicoloridas. Algumas cenas soam mais bem-sucedidas do que outras, especialmente no tratamento sonoro, mas a técnica não seria responsável pelas fragilidades do resultado. O problema, neste caso, encontra-se quase inteiramente no roteiro. Passada metade da narrativa, o texto ainda não consegue construir os protagonistas, dizer o que desejam, para onde vão, de que maneira se transformam. A narrativa enfrenta dificuldades nos elementos mais básicos: contar uma história do começo ao fim, eleger um ponto de vista e permanecer com ele.
A estrutura de O Enterro de Kojo é caótica. Ora começamos com uma mulher narrando a história do futuro, em inglês. Ora voltamos ao passado, e percebemos algo sobre um corvo, um pássaro branco entregue de presente, uma briga entre o pai e o tio durante a infância, um quiproquó envolvendo a mulher com que ambos desejam se casar. Estes conflitos surgem e desaparecem de modo abrupto, sem comunicação com as cenas que os antecedem ou sucedem. Por exemplo: o tio procura desesperado por emprego, mas sequer tínhamos visto as tentativas anteriores, de modo que o desespero parece infundado. Um personagem afirma que a empresa onde trabalhavam possui ouro em suas terras, mas de onde tirou essas informações? Por que jamais tinha procurado antes? A trama não consegue atar seus fios, perdendo alguns personagens de vista – a própria garota, no trecho central – e abandonando outros – a mãe, em particular – quando não lhe servem mais.
O caráter lendário busca trazer alguma especificidade ao projeto, tratando de transformá-lo em algo essencialmente ganense. Mas para o espectador não africano, a quem a obra é majoritariamente destinada, as múltiplas subtramas envolvendo animais, rituais e magia, com narração didática em inglês, podem ser interpretadas como uma versão exótica da cultura local, embalada para exportação. É curioso que o filme tenha a audácia de satirizar, através de um programa de televisão, uma telenovela de língua hispânica de feitura cinematográfica precária, enquanto o próprio projeto não consegue esconder as suas deficiências. Pelo menos, o elenco entrega um resultado respeitável para personagens tão simples.
Visto dentro de um evento como a Mostra Internacional de São Paulo, ao lado de mais de 300 filmes, incluindo produções de arte gigantescas e refinadas, as fragilidades de O Enterro de Kojo tornam-se ainda mais flagrantes. Pelo menos, o filme não se esconde por trás de alguma humildade ou senso de inferioridade: Bazawule aposta numa linha narrativa e imagética extrema, explorando-a do início ao fim – de modo bagunçado, certamente, mas coerente com as escolhas do autor. O espectador pode sair da sessão conhecendo pouco sobre as lendas de corvos, pássaros brancos, ressurreições e afins, mas terá percebido uma bem-vinda vontade de fazer cinema e de experimentar com as ferramentas à disposição.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.