A falta que o terremoto faz
por Bruno CarmeloNo cinema, a noção de conflito implica uma divergência de vontades: um personagem quer algo, o outro deseja o oposto. A ideia de ação ou atividade é mais simples: basta o personagem provocar alguma mudança no meio ao seu redor. Se alguém pega um carro e dirige até o trabalho, isso constitui uma ação. O drama A Morte do Maestro se apropria de uma grande tragédia – um terremoto que abalou o Equador em 2016 – para proporcionar um filme sem conflito, nem ações significativas. Ao invés de mostrar os tremores e suas consequências, o diretor José Maria Avilés se foca em um dos poucos locais onde o terremoto não foi provocou qualque impacto.
A câmera se posiciona portanto ao lado de Maestro (Marcos Andrango), fazendeiro que passeia pela floresta, observa as vacas, entra e sai de casa, senta e descansa numa cadeira. Os diálogos são raros, e as interações, inexistentes. As cenas são longuíssimas, a exemplo da silhueta de dois homens preparando uma cova, ou das folhas balançando ao vento. A ficção utiliza os recursos dos documentários mais radicais para transmitir uma impressão de verdade ligada ao banal, à não interferência do meio. Nem o diretor, nem Maestro causam qualquer impacto significativo naquele ambiente. A câmera se limita à observação enquanto o personagem se restringe ao deslocamento pelo espaço.
A escolha pode ser interessante em se tratando de um projeto sobre a solidão, a permanência das coisas, a imutabilidade da vida rural, em oposição à morte prometida no título – esta sim, uma grande ação e conflito que esperamos aparecer mais cedo ou mais tarde. Por não ter morrido em decorrência do terremoto, por não ter morrido até agora, o protagonista idoso parece condenado a repetir os mesmos gestos, como num ritual, indagando-se quando a morte virá. Nada mais lhe espera, afinal, e Maestro tampouco demonstra o mínimo prazer em continuar vivo. Ele é uma presença ausente, como um fantasma.
É curiosa a impressão de que a duração dos planos foi esticada para se chegar a modestos 60 minutos, necessários para classificar o projeto como longa-metragem capaz de concorrer em festivais. A Morte do Maestro se apresenta como projeto conceitual, espécie de provocação dos sentidos visando transmitir ao público a impressão de inércia vivida pelo personagem. O filme também poderia constituir um desafio, uma malícia de roteiro, como se os criadores se dissessem “Como eu poderia representar um terremoto no local onde ele não existiu?”.
Obras audiovisuais livres de conflitos costumam fornecer no deleite das imagens uma razão de sua existência: embora não questionem nada em particular sobre os objetos, pessoas ou locais filmados, estes projetos teriam uma construção plástica digna de interesse. O drama equatoriano atinge, em partes, esta ambição estética. Mesmo que as imagens não possuam um viés particularmente criativo, ao menos trabalham bem a luz natural, a presença deste homem no espaço, além da sensação de vazio que permeia todo o projeto. O elemento mais dinâmico são os ruídos das folhas, das vacas, do vento.
“Tudo permaneceu igual aqui”, afirma o Maestro em relação à tragédia nacional. De fato, nada mudou, e o espectador pode compreender a sensação de ter sido esquecido pela sociedade, pelos amigos, pelo país, e até pelo terremoto que ignorou sua existência. Assim, sem alarde, sem comoção, o personagem terminará sua vida, e o projeto terá representado o tédio de Maestro pelo tédio das imagens, do modo mais literal possível.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.