Resgate a uma luta silenciada
por Sarah LyraOs acontecimentos dos últimos seis anos na política e no judiciário brasileiro fazem muitas histórias fictícias parecerem amadoras. Palace II - Três Quartos com Vista para o Mar desperta um sentimento semelhante de estarmos diante de absurdos distópicos, criados por uma mente criativa com um referencial muito distante da realidade. Apesar de se concentrar em uma história real de vinte anos atrás, o documentário de Rafael Machado é mais atual do que nunca.
Com uma imagem aérea da Barra da Tijuca, bairro na Zona Oeste do Rio de Janeiro, o diretor inicia a narrativa explorando a região conhecida como reduto dos emergentes, e que na década de 90 se transformou no sonho de moradia de residentes oriundos do subúrbio carioca. Apresentados ao espectador pelo nome e número do antigo apartamento — suas profissões e origens não importam, o que os une é o fato de partilharem a mesma tragédia —, os ex-moradores do edifício Palace II falam da tão aguardada ascensão social à época. Muitos deles investiram todas as economias no que poderia ter sido um novo lar, mas os problemas começaram muito antes da entrega da obra, e nunca mais tiveram fim. Na noite do dia 22 de fevereiro de 1998, uma das torres do edifício desabou, matando oito pessoas, e o que era um sonho se transformou rapidamente em um pesadelo. Os detalhes da história são contados a partir dos depoimentos daqueles que perderam tudo e não tinham — e até hoje não têm — a quem recorrer.
Machado tem a sensibilidade de compreender o teor dramático da história, e atua principalmente no sentido de dosá-lo. Assim, por mais dolorosos que alguns momentos sejam, o diretor sabe até que ponto usar a dor dessas pessoas para contextualizar o sofrimento da situação, sem que a abordagem soe melodramática e, principalmente, sem coagir o espectador emocionalmente diante da tragédia. Os fatos falam por si só, não há por que empregar artifícios elaborados (ou sensacionalistas) para potencializar a angústia alheia, o que demonstra também o respeito com que o documentário conta a história. Com um roteiro simples, mas bem costurado, o diretor dá voz ao grupo que até hoje luta para receber valores de indenização, após um laudo pericial apontar erro de cálculo no projeto do prédio.
É interessante notar, também, como o filme não foge de questões mais polêmicas, como a de um ex-morador que perdeu a cabeça e agrediu o engenheiro Sérgio Murilo Domingues, responsável técnico pelo empreendimento, durante uma coletiva de imprensa logo após o desabamento. Por mais condenável que a agressão física seja, entendemos também de onde partiu a motivação do homem para um ato tão violento. Machado parece ciente da complexa ambivalência apresentada, e surpreende ao nos conduzir por uma experiência livre de julgamentos, mas não aposta nesses momentos, que poderiam ser a grande força do documentário. Seria interessante ver um recorte mais aprofundado dos desdobramentos do tema principal, mas Machado se limita a mostrá-los de forma passageira.
Outro momento que ilustra o potencial da narrativa mencionado acima, e que também merecia mais tempo de tela, é quando uma ex-moradora, que perdeu a filha no desabamento, fala da frustração sentida ao saber da morte do deputado Sérgio Naya, dono da construtora Sersan e idealizador do Palace II. Ela relata ter sentido um vazio enorme, porque o inimigo em comum, para quem a raiva e a luta dos moradores estavam direcionadas, não existia mais. Não houve qualquer tipo de desfecho emocional para essas pessoas — e possivelmente nunca haverá. A morte de Naya foi mais um complicador em uma situação caótica, pois além de não terem a oportunidade de vê-lo sendo responsabilizado pelo mal que fez às famílias dos 120 apartamentos ocupados, a morte dele agravou a demora no pagamento das indenizações, já que os bens que possuía foram reunidos em espólio.
Apesar da abordagem tímida, Machado sabe o poder das imagens e depoimentos que têm em mãos e não decepciona no caráter informativo do documentário, que, além de se apresentar como um exercício de empatia, serve como ponto de partida para o resgate de uma realidade brasileira cujos horrores vão muito além dos seis anos que estão frescos na memória coletiva.