A retórica da rebeldia
por Bruno CarmeloEste drama se inicia com um caldeirão de estilos e referências. A cena inicial, um longo plano aéreo de uma van passeando por uma estrada entre uma floresta, ao som de trilha sonora assustadora, corresponde à típica introdução de filmes de terror, em estilo O Iluminado. A internação forçada da adolescente Kathy (Lisa Viance) numa instituição psiquiátrica, onde imediatamente se torna líder de brigas e rebeliões, bebe na fonte de dramas amargos como Um Estranho no Ninho. Em seguida, a cena teatral da piscina remete ao melodrama feminino de superação nos moldes de Garota, Interrompida. Afinal, para onde vai Garotas em Fuga?
Ainda no início, três garotas fogem da instituição, como sugere o título. Indecisa entre a crueza social dos irmãos Dardenne e o estilo jovem e pop de Sofia Coppola, a diretora Virginie Gourmel apresenta sua trinca de protagonistas por uma característica bem definida: Carole (Noa Pellizari) é obesa, é desde a primeira cena, é vista comendo chocolates. Quando não está comendo, ela reclama de fome. Nabila (Yamina Zaghouani) é viciada em medicamentos, e portanto passa a narrativa elogiando seus cafés da manhã a base de Valium. Kathy, com tendências suicidas, mantém uma tesoura no bolso para quando tiver vontade de cortar os pulsos de novo.
O roteiro é avesso a sutilezas, o que se traduz na trajetória das garotas. Gourmel está interessada em representar nas imagens a atitude rebelde das meninas: elas roubam carros, mergulham na fonte de um shopping center, participam de um sequestro. Em todos os casos, riem, abraçam-se, continuam em frente. A trilha ora aposta em algo dançante e sensual, ora investe em tons tristes, religiosos, em sinal de empatia. Enquanto as meninas comem fast food, a narrativa foge de qualquer sensação real de perigo – parece que ninguém procura por elas – e fornece algumas facilidades narrativas, como uma cabana convenientemente posta à disposição do trio, ou um carro conhecido, em um país estrangeiro, cujo motorista pode ajudá-las.
O tom libertário funciona pelo olhar amoral da direção, que não julga as protagonistas positivamente, nem negativamente. No entanto, transparece limitações da direção, como a trajetória um tanto linear das protagonistas (embora passem por muitos conflitos diferentes, elas não sofrem mudanças substanciais) e a direção monocórdia de atores (a garota tagarela sempre fala no mesmo tom agressivo, a outra no limite da infantilidade patológica repete os cacoetes do início ao fim). Enquanto isso, diversas cenas de explosão emocional irrompem de modo abrupto, e cessam de maneira igualmente fácil. O filme aspira ao punk, mas não a ponto de realmente subverter regras narrativas ou sociais.
Por conta das concessões ao realismo, Garotas em Fuga caminha a dois passos da fábula, algo particularmente complicado devido à ausência de um ponto de vista preciso. O que Gourmel transmite sobre essas garotas, sobre a roap trip inconsequente? É louvável que o trio não seja criticado, porém o projeto tem pouco a dizer sobre o que esta rebeldia implicaria como experiência ou aprendizado. A sociedade ao redor – o pai ausente, os garotos que aparecem de lugar algum – não dialogam profundamente com Carole, Nabila e Kathy. Partindo de um contexto social, Gourmel chega a um resultado curiosamente atemporal, quase apolítico. Estes são os sintomas de uma aventura divertida, cortada de amarras sociais, devido em partes à modelagem forçada do feel good movie. É mais fácil acreditar no desejo de liberdade das garotas do que nas peripécias que enfrentam pelo caminho.