Uma brasileira
por Taiani MendesEm fevereiro de 2010, oficializada em congresso do Partido dos Trabalhadores como pré-candidata à disputa presidencial daquele ano, Dilma Rousseff fez discurso homenageando Lula, citando Mário Quintana e recordando três companheiros de luta contra a ditadura: "[...] não posso deixar de ter uma lembrança especial para aqueles que não mais estão conosco. Para aqueles que caíram pelos nossos ideais. Eles fazem parte de minha história. Mais que isso: eles são parte da história do Brasil." A ex-guerrilheira lembrou Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto; Iara Yavelberg, a Iara; e Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dodora ou Dôra, cuja vida é tema deste documentário.
Banida do Brasil em 1971, integrante do grupo de 70 presos políticos despachados para o Chile em troca da libertação do embaixador suíço Giovanni Bucher, a jovem mineira teve que se reinventar diversas vezes nos anos seguintes, abrigada em vários países na condição de exilada e condenada a jamais voltar a pisar na terra que batalhou tanto para mudar. A busca é inerente aos documentários nacionais sobre vítimas do regime militar e aqui, se não há mistério envolvendo a morte de Dora, pairam dúvidas sobre o que constituía tal Alma Clandestina.
Essa eterna estudante de medicina, obrigada colocar inúmeras camadas sobre a Maria Auxiliadora que queria revolucionar o Brasil, é perseguida no filme de José Barahona (Estive em Lisboa e Lembrei de Você) por uma atriz (Sara Antunes) que se prepara para interpretá-la no teatro. É muito boa a ideia do cineasta do paralelo entre essa mulher que precisou ser tantas que acabou se perdendo e o processo de imersão na personagem, que pode levar a consequência semelhante; e a excelente performance de Sara imbui a narrativa de emoção, dando voz, sangue, carne e osso a suas cartas e textos (com termos racistas, é necessário salientar). A fantasmagoria do alcançar a incapturável e do existir sem chão é explorada nas projeções da proposta teatral, em que justaposições e jogos de sombras reforçam a reflexão sobre imagem e identidade.
Há um diretor (Paulo Azevedo) totalmente desnecessário (homem em posição de poder não resiste a inventar uma maneira de se colocar e impor, mesmo o fato real nada tendo disso) que tenta aliviar a pressão sobre a atriz desindividualizando a história, porém o drama de Dora é especialmente pessoal pela existência de registros seus relatando as experiências no doc Brazil: A Report on Torture, rodado por Saul Landau e Haskell Wexler no Chile em 1971. Uma sobrevivente até então, afinal conseguiu escapar com vida das torturas, dos porões e dos assassinatos jamais assumidos. Quando Chegar o Momento, espécie de investigação realizada por Luiz Alberto Sanz na Europa logo após sua morte, é outra obra que Barahona tem à disposição e usa para reconstruir o percurso da guerrilheira mineira.
Barahona concilia essa leitura mais artística, por assim dizer, com os tradicionais depoimentos de quem a conhecia e estava ao seu lado em momentos marcantes. O diretor tenta imprimir certo estilo a este conteúdo, mas o uso de congelamento, gravações de bastidores e especialmente a simulação da preservação da identidade dos envolvidos, de início mostrados de costas, como mandam as regras de proteção a testemunha, e depois "revelados", não contribuem favoravelmente para a unidade narrativa e tampouco para os próprios discursos.
Recuperando a trajetória única desta destemida mulher engajada na luta por um país melhor, Alma Clandestina chama a atenção para a irremediável dor do exílio e da perda da nação, sua razão de viver. O martírio de Dora, que morreu só querendo voltar para casa (como na Canção do Exílio de Gonçalves Dias), é mais um exemplo da tradição brasileira de machucar quem mais lhe quer bem. Somos trágicos e quem assina é um português.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.