Basta uma pessoa determinada para abalar as histórias oficiais
por Taiani MendesGilda Brasileiro é uma química carioca; descendente de ministro, escrava, judia e católico; que deixa o badalado bairro de Ipanema para viver em Salesópolis, município paulista que se orgulha de ter a nascente do Tietê. O que chama a atenção da nova moradora, no entanto, não são suas águas, mas suas lembranças soterradas e especialmente uma senzala que é ponto turístico. Engajada em pesquisa tão perigosa e necessária quanto a dos primeiros químicos, mas debruçada sobre documentos e relatos fragmentados, não pipetas e substâncias, ela descobre um caminho usado para o comércio clandestino de escravos e vai fundo na investigação, como uma Sherlock Holmes dos trópicos que não tem pudor em se emocionar profundamente ao exibir a comprovação de suas suspeitas a respeito do tráfico ilegal.
A dor de Gilda é a solidão da forasteira na cidade nova, do descrédito de sua descoberta, do apagamento da história, da falta de memória do povo que ela leva no sobrenome. A solidão é compartilhada pelos idosos locais, sua fonte primária de informações, que aparentemente ninguém se dava ao trabalho de ouvir. O isolamento do passado pouco definido instiga o cineasta Roberto Manhães Reis a buscar em fotografias de Marc Ferrez detalhes que possam conectá-lo a seus antepassados.
Gilda Brasileiro - Contra o Esquecimento, de Manhães e Viola Scheuerer, é um documentário que avança em procuras paralelas que têm muito a ver, mas são apresentadas em tonalidades opostas, e a difusão de rotas, mesmo compartilhando o tema, não é algo que o favorece do ponto de vista narrativo. A carismática e nada óbvia desbravadora Gilda, que se embrenha na mata do território desconhecido (fisicamente, mas não espiritualmente) com chinelos enfeitados com corações rosas, deixa saudade quando o longa-metragem volta-se para a análise de detalhes das imagens de Ferrez, sensacionais, porém acompanhadas por uma narração reflexiva do diretor que beira o sonífero.
A abertura com spoiler do clímax, mostrando Gilda extremamente comovida por conta de uma velha carta, prenuncia que o documentário não é uma obra comum, e não poderia mesmo ser, acompanhando uma personagem tão incrível que ainda se arrisca a de repente dirigir um curta - processo que o longa acompanha, no entanto sem propósito claro, o que resulta num estranho filme dentro do filme que a montagem não explora de maneira adequada, oscilante entre o aproveitamento da investigação que também lhe serve e a observação do tateamento inseguro da cineasta iniciante.
Gilda Brasileiro - Contra o Esquecimento demonstra a inferioridade da palavra falada ante uma imagem potente (na maior definição possível), algo bastante preocupante pelo diagnóstico da falta de consideração com a tradição oral que deveria ser uma das principais fontes de memória da nação. Os descendentes do Capitão Pereira não têm vergonha de contar histórias mentirosas para os turistas, porém os menos ingênuos certamente nunca confiaram em quem coloca vendinha de balas numa antiga senzala; Gilda coleciona discursos, mas a “vitória” só é confirmada pela tinta no papel; e a leitura interpretativa e pessoal de Manhães é débil no confronto com qualquer expressão facial capturada por Ferrez. Perduram a zombaria da menina e a emoção da mulher.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.